poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

passagens

















































































Entremos, apressados, friorentos, / numa gruta, no bojo de um navio, / num presépio, num prédio, num presídio, / no prédio que amanhã for demolido... / Entremos, inseguros, mas entremos. / Entremos, e depressa, em qualquer sítio, / porque esta noite chama-se Dezembro, / porque sofremos, porque temos frio.

pieter brueghel . a adoração dos magos numa paisagem de inverno (1567) . david mourão-ferreira









segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

O aprendiz de FEITICEIRO
teorias portáteis sobre poesia













Poesia e Real ou O Poeta e o Mar


Fernando Guimarães escreve poesia e fala sobre poesia. Continua a ser um dos segredos menos bem escondidos da nossa cultura literária e filosófica, um autor devidamente consagrado, mas que se mantém discretíssimo. (Fica aqui uma excelente leitura do poeta por Maria João Reynaud).
Desta vez, encontramo-lo numa entrevista filmada, na Página Literária do Porto, em três sequências (aqui). Num primeiro momento, fala-nos da "Poesia Portuguesa Contemporânea", centrando-se, em particular, nos conceitos de "modernismo" e "pós-modernismo"; depois discorre sobre os "Sentidos da Poesia" (linguagem, imaginação e ideologia) e o "Papel da Crítica". No último filme, após a abordagem do tema "Da Década de 50 à Actualidade" (revistas de poesia e edição de poesia), temos "Poesia e Real".

Poesia e Real, portanto. A pergunta do entrevistador terá sido esta: qual a influência, na sua poesia, do lugar onde nasceu e vive, o Porto? Fernando Guimarães responde:

« Julgo que essa influência não foi significativa. Apenas terá para mim um significado (mas um significado que se fecha em mim mesmo) o facto de eu viver muito junto do mar, e olhar para o mar é qualquer coisa que não pode deixar de nos influenciar. Mas se nos influencia, poderá influenciar a poesia?»

O poeta responde com uma pergunta e um sorriso sábio e hesitante, numa espécie de douta ignorância. Depois percebemos, nos últimos planos, que se trata de uma sala cheia de livros, uma luz central, um vulto na mesa de trabalho, uma janela azul quase noite.
Talvez possamos, humildemente, colocar as coisas deste modo. Há lugares e mundos que não podem deixar de nos influenciar. Há significados que se fecham em nós mesmos. O poema imita os lugares e os mundos na medida em que o seu significado se fecha em si mesmo.

Duas citações. A primeira de António José Saraiva em Ser ou Não Ser Arte, Pub. Europa-América, 1974:
O poema e as suas palavras não representam, são. Não há além do poema, a não ser a infinitude em que ele mesmo participa. E este ser do poema e das suas palavras não se fecha dentro do poema e das suas palavras. O poema significa sempre algo, mas já não no sentido de que é o significante ou o representante de outra coisa, antes no de que não cabe todo dentro dele mesmo, está dentro e fora dele mesmo. Um poema significa uma realidade do mesmo modo que uma concha marinha significa o mar: ela não é o emblema convencional do mar: é também o mar, onde se gerou e de que nos traz a presença.

A segunda citação recolhemo-la no próprio Fernando Guimarães e é o início de um poema de Na Voz de um Nome, Roma Editora, 2006 :

Refiro-me ao mar, à areia, a esta rede dispersa e transparente.
Isto é o que escrevo e tu, leitor, vens acrescentar algumas palavras; sempre foi assim. Procuro encontrar à volta um pouco mais de luz, e se ela chegou foi porque a trazias contigo.


É favor ler todo o resto do poema. Fica na página 12.








quarta-feira, 10 de novembro de 2010

# Em Agenda #






Tenho a honra e a alegria de colaborar neste projecto. Será feita uma leitura encenada do meu texto para teatro Penas Pesadas da Neve, que pretende visitar por dentro a vida, a música e o pensamento de Olivier Messiaen (Centro Dramático de Viana: Castro Guedes- leitura e direcção cénica; Ricardo Simões- leitura). O destaque vai para o restante programa: as conferências da tarde ( "Leituras da morte e da esperança na poesia portuguesa"), o concerto da noite (Quarteto para o Fim dos Tempos de O. Messiaen) e a exposição com esculturas de Karin Somers. O meu texto pode ser lido neste blogue, a partir da ligação "teatro" da barra lateral ou, mais comodamente, aqui . Aqui e aqui encontram-se outras informações.



A pergunta na hora de partir [Daniel Faria]
leituras da morte e da esperança na poesia portuguesa

15 Nov. 2010
Universidade Católica . Porto Foz

Auditório 1
15.00h. Abertura: Prof. Joaquim Azevedo
15.30h. António Nobre - José Carlos Seabra Pereira
16.00h. Teixeira de Pascoaes - António Cândido Franco
17.00h. pausa / café
17.30h. Ruy Belo - Manuel António Ribeiro
18.00h. Daniel Faria - Carlos A. Moreira Azevedo
19.00h. Encerramento: D. Manuel Clemente

Auditório Ilídio Pinho
21.30h.
Penas Pesadas da Neve . José Manuel Teixeira da Silva
Quarteto para o Fim dos Tempos . Messiaen . Filipe Pinto-Ribeiro (piano), Pascal Moraguès (Clarinete), Tatiana Samouil (violino), Justus Grimm (violoncelo)

Decorrerá simultaneamente uma exposição com esculturas de Karin Somers

Inscrições até 10 Nov. 2010
SDPC . Porto sdpcultura@gmail.com






domingo, 31 de outubro de 2010

olhos nos olhos



Paul den Hollander - série Moments in Time - 1972-1979

Como se o lugar fosse desenhado linha a linha, e depois quadrado a quadrado, e de sombra em sombra, e depois para que, finalmente, aparecesses. És tu quem nos leva pela mão. Um cenário em sobressalto, quando te debruças para o mar. Apenas o mar, inteiro, desdobrado.

J.M.T.S.








segunda-feira, 25 de outubro de 2010

passagens


Súbito faz hoje um ano. Apenas um ponto no trânsito das passagens. Cruzamentos de vozes, luzes, escuridão e tempo. Presenças presentes, também sugeridas e multiplicadas. Apenas um ponto.


Podemos, por exemplo, celebrar assim: terei todo o gosto em oferecer um exemplar do meu livro de poemas As Súbitas Permanências ao primeiro leitor do blogue (tem de haver um critério qualquer...) que se me dirija nesse sentido, por e- mail, e não se esqueça de comunicar uma sua morada menos virtual: um lugar, uma rua, um número de porta.

post scriptum: o livrinho já encontrou o seu novo dono. Obrigado.





quarta-feira, 20 de outubro de 2010

#Em Agenda#



espaço corpus christi Largo de Aljubarrota, 13 / Vila Nova de Gaia / junto ao Cais de Gaia


Exposição de Ana Abreu / “Meninas”
Coro - baixo / de 23 de Outubro a 24 de Novembro / 2010
De terça a domingo / das 10:00h às 18:00h


inauguração / 23 de Outubro / 16h







sábado, 2 de outubro de 2010

cadernos.e.luzes

Cadernos e luzes: palavras e fotografias, álbuns, umas letras, iluminações, tempo. Súbito e para sempre.










Um poema de Música de Anónimo, fotografias de uma casa no Porto, aliás, a casa no Porto.





quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia








Virtudes e pecados da fotografia

Virtudes da fotografia ou o pecado da desobediência a uma imagem definitiva da vida. Percorrer o mundo fisicamente com uma máquina nas mãos, fazer reportagem, ter de estar no local, no seu ar, luz e atrito, no correr dos dias. Buscar depois o ensaio, algo por detrás das aparências evidentes ou uma evidência maior das aparências- e, então, por exemplo, o preto e branco, redesenhar os modelos, encontrar uma beleza politicamente incorrecta, a fluidez dos corpos, o momento em que se fundem com a respiração das casas, o banho lustral das figuras que mergulham e depois deslizam na espessura do seu próprio tempo. É assim em Jennette Williams, The Bathers (aqui).
J.M.T.S.







terça-feira, 31 de agosto de 2010

o lugar que muda o lugar




Capela dos Ossos em Lagos


É um anexo da morada branca
para lá da sucessão das naves
Em rigor, errámos apenas de transparência
em transparência, até às cúpulas quebradas de cristal
Há mudanças de horários, atrasos nos semáforos
uma ou outra metáfora
ondulações, voos espaçados
Recomeçaram obras de conservação ou de restauro
e assim se adiam as visitas
O estilo é gracioso, com ossinhos delicados
simetrias que o acaso desenhou
para quase nada
e só o pensamento agora edificou
Pendem as maçãs de ouro, no fundo do jardim
como se fossem já maduras

Ampliações e reconstruções
os nomes que imitam, como sempre, a natureza
estragos causados por um terramoto antigo
a imagem de uma santa dando à costa num caixão
e que alguém vai recolher, após naufrágio

Lento, o labor do sal e da luz nessa capela



JMTS











terça-feira, 17 de agosto de 2010

súbito a mão


São poemas antigos. Sinto que escrevo hoje bastante melhor e bastante pior do que nesses tempos. A dedicatória que lá não está é ainda a dedicatória que lá não está. Sei que, se um dia puder publicar uma reunião de poemas meus, estes vão aparecer: primeiras pedras, seixos, pedregulhos.



I.



Súbito
a mão
para lá da
luva pespontada
aqui influi o sangue
langue o corpo exangue
dói
pelo empapado tecido opaco
enquanto duram os
mecanismos perfurantes
Mas súbito
a mão





II.


Rasga-te o pó do rosto
o trovão limpo
sobem as águas
ferros enferrujam
arcos e ângulos
rumam os barcos
o teu olhar
liso
após a tempestade



III.



Precária transparência
rente à janela rasa
duram os destroços
vivos a asa aparafusada
caindo
quartos de olhos
entreaberto círculo
espiado violada
permanência
a tua mão fria
no lençol clandestino
esvaindo
Mas súbito
copiosas chuvas
nos teus dedos
frágeis
frios






IV.



Chuva nos vidrilhos 
espalhados
rui o lugar enraizado
a ferro labirinto desdobrado
à chuva grossa
nos cruzamentos cerrados
abrem-se as pontas
no mudar do nevoeiro
as pontes
A tua mão
chuva concêntrica
no lago





V.


As raízes fundas perseguem
as tuas águas serenas
reentrâncias unas sugadas
pelas células mortas minerais
Envolvem férreas circunstâncias
o leito adulterado 
os dedos cerrados
perpassados
Mas súbito
as dunas
as mãos






VI.



Persistem as duras
cintilações nos belos
espelhos a guerra ácida
óxidos ferros persistem
Mas nos membros partidos
o súbito sereno laço
a asa asa
Silêncio
a tua mão
côncavo da onda






VII.



Trovejados até à lisura
os poros de areia nas pálpebras
de chuva





VIII.



Nas veias do teu olhar
no súbito seio
da tua palma clara
reerguidas as cidades
no curso dos teus dedos
E apagam-se os sinais
                      acumulados



Esta sequência poética foi publicada em 1983, no âmbito de um concurso literário organizado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com o apoio do F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), comemorando o IV Centenário da Morte de Camões -1980-81. Coube-lhe o segundo prémio, sendo o júri constituído, nomeadamente, pelos professores Arnaldo Saraiva, José Adriano de Carvalho e representante da Associação de Estudantes. O primeiro prémio foi atribuído a Mecânica do Sexo XX, que inaugurou a obra poética de Luís Adriano Carlos, investigador e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O terceiro ao poema "Espigas de Urze" (publicado conjuntamente com o segundo prémio), de Mª. Conceição Meireles Pereira, hoje investigadora e docente do Departamento de História da mesma Faculdade (autora, aliás, de um pequeno livro que muito aprecio: O Porto no Tempo de Garrett - Biblioteca Pub. Munic. Porto, 2000). O desenho da capa é de Ana Freire.












quinta-feira, 12 de agosto de 2010

o som é como um laço



Aqui, na página virtual de Adriana.


adriana calcanhotto . "calor" in cantada . 2002


[ O som é como um laço porque a música que nos interessa - matemática pura e longínqua- chega até ao momento vivo e contingente que é, exactamente, o nosso, aqui e agora: por exemplo, calor na varanda de Lagos sobre o verão. Adriana dá-nos nesta canção uma Winterreise tropical: o pequeno formato dos grandes sentimentos, a natureza cúmplice e adversa, geografias desencontradas, o amor projectado numa distância íntima, que as inflexões da voz explicam como é.]




sábado, 7 de agosto de 2010

 Parábola Óptica
 teorias portáteis sobre fotografia






                        Momento Decisivo ou Inventário do Mundo

De entre as práticas da fotografia, procuremos reter duas polarizações, a partir das quais poderíamos graduar muitos outros percursos pessoais. São pontos de referência num universo de pesquisa estética múltiplo e cada vez mais descentrado. Cercar o mundo, estender-lhe diferentes redes de captura, sabendo que ele é matéria fugidia ou que a missão é talvez apenas impossível.
Por um lado, buscar o momento decisivo, no rasto dos passos consagrados de Henri Cartier-Bresson, das suas fotografias e escritos teóricos. Com a discrição, penetração, rapidez e rigor do olhar, fixar momentos em que o mundo como que se assemelha mais a si próprio, construindo arquétipos onde quotidiano, História da arte, geometria e ideologia dialogam numa tensão e equilíbrio enfim revelados. Só um exemplo: Derrière la gare de Saint-Lazare (Paris, 1932).





É uma cena trivial de um Paris chuvoso, que o fotógrafo-repórter percorre numa atenção quase felina. O momento decisivo: na espessura do quotidiano, na sua materialidade um pouco sórdida (pedregulhos, escadas desconjuntadas, traseiras do grande mundo), o milagre da matéria volátil e grácil da vida. O salto atrapalhado de um anónimo transeunte, para não sujar os pés na lama da cidade, repete a imagem do cartaz que anuncia a beleza leve de uma pirueta. E o fotógrafo merece, então, toda a sorte que o apuro do seu olhar justifica. No Inverno do mundo, inventar o mundo que retoma a inesperada e árdua suspensão do mundo.

Em silencioso contraponto, Andrew Hetherington (e é apenas um exemplo) prossegue o mais paciente trabalho de inventário, quarto de hotel após quarto de hotel, na sua série / livro A Room with a View, como se aí se jogasse o próprio modo de habitarmos a vida. O fotógrafo apresenta-nos uma pesquisa sistemática de quatro anos das suas errâncias, registando, de modo aparentemente neutro, as paredes de todos os hóteis onde permaneceu e as vistas das respectivas janelas. Da acumulação da banalidade nasceria uma compreensão global, dar-se-ia um salto qualitativo, numa espécie de teoria explicativa, bem fundamentada, mas por desistência ou exaustão. Talvez aqui se repitam (um pouco ao contrário, elegendo a estranheza vulgar do quotidiano contemporâneo como um novo exotismo, e retomando com ironia o romance de E. M. Forster) as imagens dos primitivos fotógrafos norte-americanos à descoberta do Novo Mundo ou as peregrinações pelas geografias orientais de finais do século XIX. Esta série fotográfica pode ser vista na página virtual do autor (aqui) e é apresentada, com a ironia devida, neste vídeo (aqui).


 



Uma outra sugestão de leitura, para acompanhar a série de Hetherington: o romance de Olivier Rolin, Suite no Hotel Crystal (aqui), em que se prova, na prática, como todas as histórias do mundo se escondem e revelam no seco rol dos quartos de hotel que nos cabem ou fazemos por merecer.

J.M.T.S.






sábado, 17 de julho de 2010

olhos nos olhos



Bernard Plossu - Le Sommeil


Há uma vibração no círculo simples das coisas que te pertencem, quando deixas que o ar se desloque sensível e assim adormeça. Se pareces desatenta é só porque tudo habitas. Poderíamos falar da qualidade musical da luz que iluminas ou do modo rigoroso como abandonas os lençóis que vemos viverem contigo. Alguém tentará escolher uma palavra, rubato, quer dizer, chegamos um pouco tarde ou algo cedo, e isso será apenas um nome para a vida.

J.M.T.S.



domingo, 11 de julho de 2010















J.M.T.S.


súbito
Súbito, nem se sabe porquê, irrompem algumas pré-histórias.Na primeira é uma história que invento, precisamente uma história, a primeira história. Recomeço-a eternamente. Escrevo e torno a escrever a sequência inicial, a única que existirá. Um homem parte, a noite vem antes do tempo, cai mais de repente, descrevem-se minuciosamente os mecanismos da tempestade, o momento de suspensão, o bater interior do espaço parado. Grandes nuvens correm nos seus olhos. Está preso ao passado que lhe escorre com a chuva, mas sente o apelo da viagem, um coração que insiste. Surge o comboio fulgurante, trovões e relâmpagos, é a hora. No fim da linha, um dia, chegará à cidade que abandonou, o ar tão fácil de respirar.
J.M.T.S. in A Minha Palavra Favorita, Centro Atlântico, 2007












quarta-feira, 30 de junho de 2010

as súbitas permanências



MONTAGEM
para a Paula e para a Sofia

E depois
eram os meninos do aniki-bobó
no campo longo as
tranças a preto e branco o bolso
do calção dava para a varanda do
rio
entre as ervas da chita o
passarinho totó e a estrela dos barcos
O comboio, a queda, o túnel, o túnel


J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001 (aqui)




























































Amélia Piedade
trabalhos originais para o poema "Montagem"








terça-feira, 22 de junho de 2010

O aprendiz de FEITICEIRO
teorias portáteis sobre poesia



jorge colombo, the reader (recolhido aqui)

A Leitora

Ler, e ler, por maioria de razão, poesia, poderá exigir para muitos uma metafísica, mas implica, antes de mais, e para todos, uma física. Mau estar, embaraço, desencontro. Ou então felicidade viva, corpo a corpo, talvez uma arte de amar. É o que nos propõe o pequeno filme de Jorge Colombo, The Reader: expectativa, envolvimento, ritmo, ocultação, sedução; à volta, igual e de cada vez diferente, a vida quotidiana.

Outros lugares onde se poderá aprender o mesmo: um belíssimo sítio virtual, O Silêncio dos Livros (aqui), curso acelerado que nos revela como ler implica perder, ganhar, transformar o corpo; ou o álbum de Eduardo Prado Coelho, Manuel Gusmão e Duarte Belo- O Leitor Escreve Para Que Seja Possível (aqui); ou ainda o romance de Italo Calvino, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante (Porto, Público, colecção "Mil Folhas", nº 11, 2002- trad. José Colaço Barreiros):

Estás para começar a ler o novo romance Se Numa Noite de Inverno um Viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. (...) Arranja a posição mais cómoda. Sentado, estendido, enroscado, deitado. Deitado de costas, de lado, de barriga. Na poltrona, no sofá, na cadeira de baloiço, na cadeira de praia, no pufe. Numa cama de rede, se tiveres alguma cama de rede. Em cima da cama, naturalmente, ou dentro da cama. Até podes pôr-te de cabeça para baixo, em posição de yoga. Com o livro virado ao contrário, bem entendido.

Faltará à Didáctica da Poesia (se tal não for uma contradição nos seus próprios termos) a atenção a esta física da leitura : ler alto, ouvir ler alto ou criar condições para que cada qual saiba estar de corpo perdido e reencontrado perante os poemas que existem no mundo que assim se recria.





sábado, 19 de junho de 2010

passagens
(1922-18/6/2o10)


(...) A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar,a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez, E quando vamos para debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o carro da pedra, não será isso morte sem recurso, Se estamos falando dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos, Blimunda(...). memorial do convento




quinta-feira, 27 de maio de 2010

Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia



Um espaço para falar de fotografia, o que quer que isso queira dizer: o falar sobre e o próprio objecto do falar. Uma luz ou escuridão central de que só nos acercamos, por pudor, temor ou encandeamento. A inspiração do título vem de uma fotografia de m. álvarez bravo.





Livros de Fotografia: modo de usar

Como ver fotografias? E nos livros?
Claro, podem expor-se, elas são mesmo o resultado de exposições várias, dos corpos, dos filmes, nas paredes. E nos livros.
Nos livros estão expostas de modo a que a sua mútua presença cria desde logo narrativas implícitas, fios de espaço e do tempo, a percorrer. Fotografar é ocupar o lugar e um livro de fotografia encena ou retoma essa ocupação. Não esquecer ainda a existência física dos nossos dedos que reorganizam a cena, em velocidade, sequência, atrito, hesitação.
O livro de fotografia 720 de Andrew Phelps (ver aqui), bem como o vídeo que o apresenta, são uma muito sugestiva colocação destas questões.

 
J.M.T.S.






terça-feira, 25 de maio de 2010

O aprendiz de FEITICEIRO
teorias portáteis sobre poesia




TEORIA DA POESIA: parêntesis de parêntesis ou o feitiço contra o feiticeiro



No título a alusão ao belíssimo livro de Carlos de Oliveira. Esta etiqueta recobrirá efémeros pensamentos pessoais sobre poesia, num dia em que o autor do blogue se ache mais inspirado, ou justamente menos, talvez apenas mais pachorrento, para recordar a versão pacífica de um verso célebre. Ou recolhe-se então, a propósito, uma citação teórica, um poema ou excerto narrativo alheios, tudo o mais.

É também uma homenagem distante a um professor de Teoria da Literatura, Américo Santos, a quem muito admirava por um saber que queria sobretudo inquietar (assistente de um outro professor que também não esqueço, José Augusto Seabra, ambos absurdamente já distantes do mundo onde estamos). Ensinava ele que nesse livro de prosas estavam sugeridas, exemplificadas ou consagradas todas as grandes questões de uma teoria da literatura (dizia: podem daqui nascer infinitos ensaios sobre a vida dos livros).

Permita-se uma primeira intuição sobre o tema que aqui nos ocupará: uma teoria da poesia talvez se traduza apenas em parêntesis como estes, parêntesis que sempre se abrem noutros parêntesis, algo que vai avançando, mas tudo suspendendo e a tudo regressando. Sim, e talvez se vire o feitiço contra o feiticeiro, manipulando matérias facilmente inflamáveis.

O Aprendiz de Feiticeiro- um livro que, se pudesse, mandava encadernar com uma capa sóbria de pele natural, para proteger os grafismos de Lima de Freitas e as fotografias de Augusto Cabrita, mas haveria nela desenhos extravagantes embutidos, labirintos lavrados a fogo.

J.M.T.S.






















Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro (com fotografias de Augusto Cabrita),
publicações dom quixote, 1971









quarta-feira, 5 de maio de 2010




















J.M.T.S.


súbito
Agora o menino fixa os brilhos do Sol numa poça de água. O labirinto de ruas, esquinas, montras, espelhos, tabuletas que dizem «moda», «médico», «filatelia», «retrosaria», trouxe-o até ali, àquela praça de luz mediterrânica. Vão partir para África tios e primos, fica pequenino à sombra do vapor, um imenso paquiderme, aquele movimento do cais chora-lhe nos olhos. Ele antecipa a sirene dramática, o barco que vai desencostando, os sabidos lenços brancos. Fixa os brilhos de Sol numa poça de água, a intensidade que ofusca, e pensa, surpreendendo-se de o pensar: «Vou olhar esta luz. Daqui a muitos anos volto a pensar nela, ela existirá ainda talvez, talvez tudo exista ainda um pouco e nada tenha acabado e eu fique aqui para sempre a olhar o brilho desta água para não chorar, talvez partam mas tudo fique ainda um pouco, para sempre».


J.M.T.S. in A Minha Palavra Favorita, Centro Atlântico, 2007

terça-feira, 27 de abril de 2010

olhos nos olhos


Jeanloup Sieff - Istanbul - 1959


Um barqueiro sombrio? Recorde-se a inclinação de certas horas ou o embalo com que chegam as cidades, aparecem, desaparecem com os avanços das vagas, o vogar atento dos peixes. Saltaremos de barca em barca, até alcançarmos os cais flutuantes, balançam imenso logo que neles assentamos os pés. As torres sobem até ao céu, mergulham com as casas em atropelado precipício. Um pouco mais tarde, esqueceremos a viagem na ondulação dos mercados, ruas e becos. Aí naufragaremos para sempre.

J.M.T.S.



sexta-feira, 23 de abril de 2010

as súbitas permanências



O JOVEM BACH, IMPROVISANDO EM OHRDRUF


Aqui estou de improviso
rapaz solitário no gelo do tempo
Talvez se chame destino, é uma cifra inspirada
água que de longe corresse nos dedos mais vivos
Ficam rígidos se paro
e a música brilha, então, silenciosa no ar da neve
Horas e horas a fio
abre-se-me a vida, imparável, submissa
como se houvesse uma glória das coisas
que assim nos fosse sensível
Voos que de voos se engendrassem
do mais surdo rumor dos dias
velórios sucessivos, a lenha conquistada
tantas outras fugas
O vento destas frinchas enregela os ossos
oxida a floresta dos tubos
musa de um desarmado fervor cósmico
Assim se aprende
no acaso decidido dos meus dedos
que tudo pode afinal acontecer
aqui tão só, mal chegando aos pedais
que movem o mundo


J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001 (aqui)






























































Amélia Piedade
trabalhos originais para o poema
"O Jovem Bach, improvisando em Ohrdruf"