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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

das palavras dos outros




  jane hirshfield/ in Afagando a Face de Lorca, Companhia das Ilhas, 2020
                     tradução de  Francisco José Craveiro de Carvalho



A LAVAR MAÇANETAS


As maçanetas em vidro não giram de modo diferente.
Mas cada Dezembro
dou-lhes brilho com água avinagrada e algodão.
 
Acaba outro ano.
Neste, comi pickles de Kyoto
e, em Xi'an, toquei a face de uma tartaruga em pedra,
fria como pedra, como tartaruga.
 
Não consegui ler a mensagem sobre o futuro gravada na carapaça
ou ouvir o que fizera a sua cabeça erguer-se
para escutar, durante tanto tempo.
 
À sua volta, a loucura dos impérios continuava,
um cavalo sem freio que corre milhares de milhas
entre pastagens.
 
À nossa volta, a loucura dos impérios continua.
 
Se somos felizes,
se somos infelizes não tem importância.
A tartaruga em pedra escuta. O cavalo esfomeado corre.
 
Rolando maçanetas, um ano entra noutro. 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DA CAPO
 
Pegue no coração como se fosse um seixo
e atire-o para longe.
 
Pouco tempo depois não haverá nada.
Em pouco tempo a última onda cansar-se-á
nas ervas daninhas.
 
Tendo regressado a casa, corte cenouras, cebolas às rodelas e aipo.
Envolva-os em azeite antes de juntar
as lentilhas, água e ervas aromáticas.

As castanhas tostadas a seguir, um pouco de pimenta, o sal.
Para terminar, o queijo de cabra e salsa. Sirva-se.
 
Pode fazer isto, digo-lhe eu, é permitido.
Comece a história da sua vida novamente.
 
 

 




 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
OPTIMISMO
  
Tenho vindo a admirar cada vez mais a resiliência.
Não a resiliência simples de uma almofada cuja espuma 
volta repetidamente à mesma forma, mas a tenacidade
sinuosa de uma árvore: tendo a luz de um lado sido bloqueada não há muito,
vira-se para outro. Uma inteligência cega, claro.
Mas de tal persistência surgiram tartarugas, rios,
mitocôndria, figos- toda esta terra resinosa, que se não retrai. 







 

 

 

 

 

 

 

O CALOR DO OUTONO

O calor do Outono
é diferente do calor do Verão.
Um faz as maçãs amadurecerem, o outro faz delas sidra.
Um é um cais que se abandona,
o outro a coluna vertebral de um cavalo magro a nadar
e o rio cada dia uns graus mais frio.
Um homem com cancro troca a mulher pela amante.
Antes de ele se ir embora ela estica os cintos dele no roupeiro,
volta a arrumar por cores as peúgas e as camisolas
na cómoda. Isso é calor de Outono:
a mão dela colocando fivelas prateadas com prateadas, 
douradas com douradas, pondo cada uma
no gancho a que pertence num roupeiro em breve vazio
e chamando-lhe prazer.





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
fotografias: JMTS