passagens (1/3/1810)
FRÉDÉRIC CHOPIN, NO INVERNO DE MAIORCA
para o Domingos, em memória do tio António
1. A chegada à Ilha
Como se, olhando muito, fechasse enfim os olhos
e me embalasse, em contratempo, o ondular dos remos
o abraço dos últimos balanços que trazem a ilha
os palmares de brisa inebriante, dizem
enquanto tusso assim na tempestade
e ardem as fundas grutas do meu peito
os ecos da escassa música, o duro ataque
2. No Luar de Palma
Onde estamos, se nos cerca a vibração da prata
o mar das baleares, o canto sacudido pelo vento?
Alheio bate-nos um coração do mundo noite fora
o contraponto, em silêncio, das ruas paralelas
ou as estrelas, a sua fuga, nos vagares da insónia
e ouço, do pátio exíguo, no fundo leito
o sopro inteiro do poço encantado do lugar
3. A Arte da Composição
A estância da harmonia é esta casa dos ventos
o doce mecanismo dos tufões, um nocturno rumor improvisado
Chego-me ao fogo da cozinha, se o frio é assim a pele dos dedos
quando Aurora ilumina a perfeição, digamo-lo, de uma cebola
a aspereza nas pétalas delicadas sob a faca
Persigo os riscos das bátegas, o decisivo curso errático da vida
prelúdios para sempre inacabados, lágrimas apenas verdadeiras
4. A Ocupação do Tempo
Procuramo-nos longe nesta rude estação
de costas um para o outro, como quem avalia uma distância
o estrondo do trovão no claustro abandonado, os relâmpagos
que o tempo ecoará no seu lento fulgor
Espera-se sempre um acorde e o silêncio
que ilumine o intervalo desta vida
a tua nudez anunciada, a sábia incompletude do amor
5. Adeus
Entre vagas e vagas alternadas
partimos sempre da nossa vida inteira
como de uma ilha tão pouco visitada
À deriva das horas submersas
a neve sobre a neve, o rosto da amada
vida que corria com o rio
este último canto sobre as águas
J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001
[Saber que o tempo não se acumula, vibra em cada momento.
Recordo este poema no dia em que Chopin nasceu, há 200 anos,
um de Março de mil oitocentos e dez.]
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