poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








sexta-feira, 26 de março de 2010

olhos nos olhos


Manuel Álvarez Bravo - Lucy - 1980

Reparem como estou vestida pelo sol mexicano. Fui desta vez o ser degolado, espantaram-me o cuidado do golpe e a ternura implacável. Só me resta devolver-te os olhos desejosos de mim. Toma-os com a melhor dedicatória: assim dançarei em redor dos salões sombrios a que ficaste condenado. Não quebres agora o silêncio, deixa-me despida de mim própria. Um triângulo de ouro escurecido, correspondências interrompidas, pupilas, mamilos, coisas visíveis que também espreitam o mundo.
J.M.T.S.




segunda-feira, 22 de março de 2010













J.M.T.S.



súbito
Desta vez é conduzido pela mão antiga do avô. Ele mostra-lhe as obras na cidade, leva-o nas ruas invadidas pela noite. Os operários aparecem das valas, lançam para as bermas uma terra que vem muito do fundo, os torrões rolam até aos nossos sapatos profanos. Outros avançam, quase sinistros, empunhando bicos de gás, vivem nas máscaras onde se reflecte, bruxuleante, a torre da cidade, a mesma que vê do seu quarto, entre os lençóis e as cortinas. É preciso ter cuidado nas esquinas apertadas, por entre os agudos afloramentos de granito, que são casas cegas no meio das casas com gente lá dentro, é preciso ter cuidado com os eléctricos, diz o avô, cortam de repente as curvas e as plataformas avançam sobre os passeios, mas ele leva-o pelo lado de dentro. É então que sente, como se fosse uma presença escondida, a atmosfera dos portais, um ar laboriosamente edificado, pica nos olhos e no nariz, húmido e denso.


J.M.T.S. in A Minha Palavra Favorita, Centro Atlântico, 2007




quarta-feira, 17 de março de 2010

o coração vertiginoso e a lentidão do mundo




alfred hitchcock . janela indiscreta . 1954
com james stewart e grace kelly




segunda-feira, 1 de março de 2010

as súbitas permanências
passagens (1/3/1810)



FRÉDÉRIC CHOPIN, NO INVERNO DE MAIORCA
para o Domingos, em memória do tio António


1. A chegada à Ilha

Como se, olhando muito, fechasse enfim os olhos
e me embalasse, em contratempo, o ondular dos remos
o abraço dos últimos balanços que trazem a ilha
os palmares de brisa inebriante, dizem
enquanto tusso assim na tempestade
e ardem as fundas grutas do meu peito
os ecos da escassa música, o duro ataque


2.
No Luar de Palma

Onde estamos, se nos cerca a vibração da prata
o mar das baleares, o canto sacudido pelo vento?
Alheio bate-nos um coração do mundo noite fora
o contraponto, em silêncio, das ruas paralelas
ou as estrelas, a sua fuga, nos vagares da insónia
e ouço, do pátio exíguo, no fundo leito
o sopro inteiro do poço encantado do lugar


3.
A Arte da Composição

A estância da harmonia é esta casa dos ventos
o doce mecanismo dos tufões, um nocturno rumor improvisado
Chego-me ao fogo da cozinha, se o frio é assim a pele dos dedos
quando Aurora ilumina a perfeição, digamo-lo, de uma cebola
a aspereza nas pétalas delicadas sob a faca
Persigo os riscos das bátegas, o decisivo curso errático da vida
prelúdios para sempre inacabados, lágrimas apenas verdadeiras


4.
A Ocupação do Tempo

Procuramo-nos longe nesta rude estação
de costas um para o outro, como quem avalia uma distância
o estrondo do trovão no claustro abandonado, os relâmpagos
que o tempo ecoará no seu lento fulgor
Espera-se sempre um acorde e o silêncio
que ilumine o intervalo desta vida
a tua nudez anunciada, a sábia incompletude do amor


5.
Adeus

Entre vagas e vagas alternadas
partimos sempre da nossa vida inteira
como de uma ilha tão pouco visitada
À deriva das horas submersas
a neve sobre a neve, o rosto da amada
vida que corria com o rio
este último canto sobre as águas


J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001


[Saber que o tempo não se acumula, vibra em cada momento. 
Recordo este poema no dia em que Chopin nasceu, há 200 anos, 
um de Março de mil oitocentos e dez.]







 
 










única fotografia conhecida de Chopin, 
atribuída a Louis-Auguste Bisson, 
de 1849, o ano da morte