sublinhados & notas
O Jogo das Comparações | Inês Lourenço | col. azulcobalto 042 | Companhia das Ilhas | Lajes do Pico, 2016
DO FLÂNEUR AO INVENTOR DE JOGOS
Apresentar
um livro de poesia como este (Inês Lourenço, O Jogo das Comparações, Companhia das Ilhas, 2016) deveria ser uma experiência tão vital
como a própria poesia. Poderemos, nessa medida, começar a aproximação ao novo
título da autora (que surge já após a recente antologia que abrange os 35 anos
da sua escrita, intitulada O Segundo
Olhar, na mesma editora, em 2015), a partir de um exemplo significativo
disso mesmo:
IRMÃOS KARAMAZOV
Perguntava
à menina da livraria
por
estes irmãos, cujo nome
ela
dedilhou no teclado
com
óbvias letras erradas.
-
É recente? – indagou
com
uma prestável candura.
O
eventual comprador parecia
não
saber ao certo. Uma espécie
de
desânimo atravessa-me os sentidos
na
memória nostálgica
dos
meus verãos adolescentes, falésias
de
tardes febris com a pele
das
páginas onde Aliocha e Ivan
ou
Sónia e Raskolnikoff
iluminavam
a culpa e o temor
que
fatalmente já me pertenciam.
(p.52)
O
poema traz-nos alguns dos temas que têm sido privilegiados pela autora e o seu
tom inconfundível: impõe-se o elogio da leitura e dos livros enquanto lugares
vitais, uma concepção não essencialista, idílica ou decorativa da escrita, um
pendor narrativo, a ligação com o quotidiano e a memória. E também esse modo
crítico e implacável perante alienações, ignorâncias e pretensiosismos humanos.
Mas é um poema que funciona como contra-exemplo relativamente ao local que o
livro escolhe para se apresentar, porque talvez não haja acasos: uma livraria
do Porto que se chama, significativamente, Flâneur.
Flâneur é um dos pobres heróis modernos desapossados de
epopeia, como nos dizem Poe, Baudelaire ou Walter Benjamin. Se, para o
primeiro, é um sujeito suspeito que assume o espírito do crime, já para
Baudelaire e Benjamin surge imerso na grande cidade, caminhando-a
infatigavelmente, mas observando-a nessa distância crítica que o torna, feitas
as contas, imune aos seus valores mercantis, bem ao contrário, por exemplo, do dandy, que se assume, nesse mesmo
contexto, como uma mercadoria exótica e sofisticada (veja-se a propósito o
interessante artigo “Duelo Poético na Cidade: as Peripécias do Herói Moderno”,
de Ricardo Daunt, in Colóquio / Letras,
nºs. 125/126, 1992). O sujeito da poesia de Inês Lourenço assume muitas vezes
(e de novo nesta recolha) o ponto de vista do flâneur, até porque se trata, decididamente, de uma escrita urbana-
relembre-se um título que reúne alguns dos seus livros: Um Quarto com Cidades ao Fundo. Mas adopta também a atitude de uma
outra destas figuras da modernidade, o trapeiro,
que se confunde com o poeta: recolher restos de sensações e de rimas como o
trapeiro os despojos da cidade. É assim que a poesia de Inês Lourenço valoriza
aparentes refugos da vida e do quotidiano, reabilitando-os, como se se tratasse
de uma nova alquimia. Esses seres e lugares preenchem O Jogo das Comparações, seja uma galinha, uma teia de aranha ou
outros seres em “desabrigo”, desta vez humanos, para invocar um título do
livro. O flâneur e o trapeiro preferem “as pequenas pátrias”
(conforme a sequência final), fazem questão de manter as suas distâncias
relativamente a instituições, poderes e artefactos mais ou menos sublimes.
O Jogo das Comparações é um excelente exemplo da poética de Inês Lourenço e
chega-nos às mãos depois de viver a sua própria história: “habent sua fata libelli”, como se constata desde tempos remotos. Esteve para
ser publicado com a chancela da “& etc.” (como alguns dos títulos imediatamente
anteriores da autora), mas, já em fase final de produção, tal acabou por não
acontecer, pela circunstância do desaparecimento do editor, Vítor Silva
Tavares, e a extinção da sua, aliás insubstituível, actividade “subterrânea”. É agora muito bem acolhido pela Companhia
das Ilhas (e envolvido, na contra-capa, por uma fotografia de Susana
Paiva). Vejo-o como um exercício de apuro
e estilização de muitos dos motivos desde sempre presentes nesta poesia, numa
espécie de música de câmara, após alguns livros a que poderíamos associar uma
certa ressonância sinfónica. Caracteriza-o um expressivo efeito musical de
surdina, no mesmo gesto em que retoma muitos dos veios temáticos da escrita da
autora, desta vez organizados em três sequências, que estabelecem uma espécie
de tríptico.
A
segunda, “Teia”, está muito próxima dos seus bestiários, da atenção aos seres
frágeis e plenos, afirmando uma insinuante nostalgia relativamente à
competência vital dos bichos: “abandono” e “soberbas coisas ínfimas”, para
retomar a epígrafe de Manoel de Barros. Mas trata-se de unir esses motivos
essenciais ao percurso biográfico e a “cenas primitivas” que se inscrevem na
construção de uma identidade pessoal, como em “A Galinha” e “Teia”, ou,
lembrando “Gatos e Camélias” e “Animal Verde”, balizam pequenas descobertas e
sensibilidades do quotidiano do sujeito poético. Encontramos ainda uma subtil
parábola política sobre a inteireza e integridade das existências (“No Tempo em
Que os Gatos eram Inteiros”), bem como a mordacidade que caracteriza
frequentemente uma escrita que vem prolongar a longuíssima tradição satírica da
poesia portuguesa. Por sua vez, “Galgos”, “Equus”, “Taurus” ou “Serpens”
transplantam o concreto biológico da vida mais vital, o mais chão fluir dos
dias, para uma inteligibilidade mítica ou estética.