poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








domingo, 31 de dezembro de 2017

das palavras dos outros




john berger/ E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias 
 Quasi edições, 2008 | tradução Helder Moura Pereira


Depois foi um pequeno gato. Um gato completamente branco. Vivia numa cozinha de chão irregular e chaminé a céu aberto, com uma mesa desconjuntada e paredes rugosas, caiadas de branco. Quando estava encostado à parede, o gato tornava-se quase invisível, só se viam os olhos escuros. Quando virava a cabeça, desaparecia no interior da parede. E quando se punha aos saltos no chão ou em cima da mesa, parecia um ser que nascia da própria parede. O modo como aparecia e desaparecia dava-lhe a intimidade misteriosa de um deus do lar. Eu sempre achei que os deuses do lar foram animais. Por vezes visíveis, por vezes invisíveis, mas sempre presentes. Quando me sentava à mesa, o gato saltava-me para os joelhos. Tinha dentes aguçados e tão brancos como o seu pêlo. E língua cor-de-rosa. Como todos os gatos de pouca idade, passava a vida a brincar: com a cauda, nas costas das cadeiras, com o que ia encontrando no chão. Quando queria descansar, procurava um sítio confortável e aí ficava. Ao olhá-lo, fascinado, durante uma semana, notei que ele escolhia, sempre que podia, algo que tivesse cor branca- uma toalha, uma camisola, roupa interior. Então, de olhos cerrados e boca fechada, enrolava-se todo e tornava-se invisível no meio das paredes brancas.




Lauren Henkin
visto aqui





 

sábado, 25 de novembro de 2017

das palavras dos outros




gastão cruz/ Existência, Assírio & Alvim, 2017


SÓIS

Acabou fevereiro e a luz lisa
de março tomou conta do deixado
deserto do inverno; abro a camisa
ao trémulo calor que descuidado

entra na pele: uma ilusória brisa
igual à ilusão do adiado
verão geral que a memória exorciza
como se só pensá-lo fosse o lado

mais cruel de existir porque não há
como recuperar os verões findos
num único verão que contivesse

todos nem a memória poderá
na sua luz total ter os infindos
sóis dúbios de onde a luz desaparece

                                                                             1 de Março de 2017



 
AZUL-BILBAU

                               Azul-cantábrico, azul-bilbau
                               Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

Toda a noite sonhei com o mar de bilbau
que só rapidamente uma vez vi
de passagem em san sebastian
mar cantábrico duro azul e frio

Toda a noite? segundos? as imagens
do sonho têm tempo? azul-bilbau
imagem rediviva poesia
no sonho nítida

com a vertigem fixa de uma onda
que veio sobre mim como um castigo
porque a memória em sonho convertida

se ganha a nitidez clara da pedra
mata a imagem que verdadeiramente
não existe exercendo o seu assédio






Bruno Réquillart
Itália, 1977






livro comprado na apresentação na livraria Flâneur,
 no Porto, em 18 de Novembro de 2017 







 


sábado, 4 de novembro de 2017

processos sumários




um novo poema do ciclo na Enfermaria 6
 
"A Oitava Sinfonia de Jean Sibelius"
 




A música, o seu medido passo / e altos voos, é como se nem a ouvissem



 Josef Sudek



quinta-feira, 26 de outubro de 2017

# Em Agenda #


Lançamento 
28 de Outubro | 17 h | Centro Mário Cláudio | Venade | Paredes de Coura | aqui





A Criança Eterna | antologia de contos 

 prefácio de Mário Cláudio

Nas Margens do Rio Gilão - Yvette Centeno | O Tempo e a Eternidade - Nuno de Figueiredo | O Búzio do meu Pai - Carla Pais | Infância: Estado Sólido do Tempo - Diogo Leite Castro |
Subir o Tempo à Procura da Infância - Maria Almira Soares | Uma Maçã por Dia - Inês Barata Raposo | Os Tamancos dos Outros - Francisco Resende | O Espelho - Márcia Balsas | Limbo - José Manuel Teixeira da Silva | Última cena. Primeiro Ato. - Conceição Pimenta | Neve Artificial - André Domingues
  

Centro Mário Cláudio 




terça-feira, 17 de outubro de 2017

processos sumários

 



JOÃO CABRAL NO CONSULADO DO PORTO


Há-de haver um poema sobre desatenções
e diversas faltas de amor, mas acreditem
sou alheio a esse facto

À falta de outra palavra
direi que nem sequer estou triste
porque apenas vejo o que vejo

Ergue-se, é certo, uma muralha e o nevoeiro
coroando as torres de imaginação
e poderia ao menos registar a poeira ferrujenta
e endurecida, súbitos vapores do lirismo

Desta vez de nada tomei posse
estão impecáveis os cadernos, as réguas
e os carimbos, cuido só das cortinas, dedicada
cegueira à luz que se perde no granito

Em pura verdade, volto o olhar
às extensões da Andaluzia, assaltam-me 
recados urgentes do Recife, e nem esqueço
a minha ausência, dia após dia
a iluminar uma casa do Rio de Janeiro
Tudo expliquei com o justo exemplo
da faca, dispenso os dois gumes
as armas brancas em demasia

Quase nunca abro a porta que fizeram
os artesãos desta cidade, muito agradeço
tão boa madeira, deixa-me à distância de
soluços, catarros, gritaria solta do lugar

quando, de hora a hora, ofereço
o que tenho de melhor, um tal silêncio 
e olhos que calhou estarem fechados


jmts





Construção Ponte Luiz I | Emílio Biel | 1885
 







terça-feira, 26 de setembro de 2017

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

sublinhados & notas



depoimento na revista Time Out Porto (Agosto 2017) 



COMO EU ESCREVO

Antes de mais, seguir o conselho de um grego antigo: falar e escrever, mas só se for mais intenso do que o respectivo silêncio. Ainda assim, arriscar, porque o céptico Bartleby não existiria sem o diligente Melville. Partimos, como se vê, do que os outros fizeram e acrescentamos gestos muito nossos. Aceito a energia de gatafunhos e manchas de tinta, pode ser num café barulhento ou em rascunhos mentais pelo caminho, em discreta homenagem aos peripatéticos. Seguem-se tentativas de depuração, em que o computador ajuda muito, se possível no silêncio, num lugar simplificado, sem esquecer a prova dos nove da leitura em voz alta. Os textos merecem depois algum repouso, entre os trabalhos e os dias. Como na arte das compotas, só então se avalia o sabor inteiro, se algum persistiu. A insinuação do que escrevo surge-me de um fundo de vivências indistinto e forte, que procuro esclarecer em meia dúzia de fórmulas abstractas. Mas o projecto é alcançar uma espécie de música de sílabas e ideias, de lugares, tempos e pessoas. Podemos verificar se tudo correu bem: as palavras aumentaram a vida?; a vida aumenta as palavras? Isto tudo sou eu a dizer, mas temos acesso a muito pouco. “Como eu escrevo” é só mais uma ficção, um pouco inconsciente de si própria. Em todas elas e nos poemas sigo o antigo acordo ortográfico. O outro só em relatórios, e não é disso que se trata aqui.

jmts








terça-feira, 22 de agosto de 2017

sublinhados & notas



O Jogo das Comparações  | Inês Lourenço | col. azulcobalto 042 | Companhia das Ilhas | Lajes do Pico, 2016




DO FLÂNEUR AO INVENTOR DE JOGOS


Apresentar um livro de poesia como este (Inês Lourenço, O Jogo das Comparações, Companhia das Ilhas, 2016) deveria ser uma experiência tão vital como a própria poesia. Poderemos, nessa medida, começar a aproximação ao novo título da autora (que surge já após a recente antologia que abrange os 35 anos da sua escrita, intitulada O Segundo Olhar, na mesma editora, em 2015), a partir de um exemplo significativo disso mesmo:




IRMÃOS KARAMAZOV

Perguntava à menina da livraria
por estes irmãos, cujo nome
ela dedilhou no teclado
com óbvias letras erradas.
- É recente? – indagou
com uma prestável candura.
O eventual comprador parecia
não saber ao certo. Uma espécie
de desânimo atravessa-me os sentidos
na memória nostálgica
dos meus verãos adolescentes, falésias
de tardes febris com a pele
das páginas onde Aliocha e Ivan
ou Sónia e Raskolnikoff
iluminavam a culpa e o temor
que fatalmente já me pertenciam.

(p.52)


O poema traz-nos alguns dos temas que têm sido privilegiados pela autora e o seu tom inconfundível: impõe-se o elogio da leitura e dos livros enquanto lugares vitais, uma concepção não essencialista, idílica ou decorativa da escrita, um pendor narrativo, a ligação com o quotidiano e a memória. E também esse modo crítico e implacável perante alienações, ignorâncias e pretensiosismos humanos. Mas é um poema que funciona como contra-exemplo relativamente ao local que o livro escolhe para se apresentar, porque talvez não haja acasos: uma livraria do Porto que se chama, significativamente, Flâneur.


Flâneur é um dos pobres heróis modernos desapossados de epopeia, como nos dizem Poe, Baudelaire ou Walter Benjamin. Se, para o primeiro, é um sujeito suspeito que assume o espírito do crime, já para Baudelaire e Benjamin surge imerso na grande cidade, caminhando-a infatigavelmente, mas observando-a nessa distância crítica que o torna, feitas as contas, imune aos seus valores mercantis, bem ao contrário, por exemplo, do dandy, que se assume, nesse mesmo contexto, como uma mercadoria exótica e sofisticada (veja-se a propósito o interessante artigo “Duelo Poético na Cidade: as Peripécias do Herói Moderno”, de Ricardo Daunt, in Colóquio / Letras, nºs. 125/126, 1992). O sujeito da poesia de Inês Lourenço assume muitas vezes (e de novo nesta recolha) o ponto de vista do flâneur, até porque se trata, decididamente, de uma escrita urbana- relembre-se um título que reúne alguns dos seus livros: Um Quarto com Cidades ao Fundo. Mas adopta também a atitude de uma outra destas figuras da modernidade, o trapeiro, que se confunde com o poeta: recolher restos de sensações e de rimas como o trapeiro os despojos da cidade. É assim que a poesia de Inês Lourenço valoriza aparentes refugos da vida e do quotidiano, reabilitando-os, como se se tratasse de uma nova alquimia. Esses seres e lugares preenchem O Jogo das Comparações, seja uma galinha, uma teia de aranha ou outros seres em “desabrigo”, desta vez humanos, para invocar um título do livro. O flâneur e o trapeiro preferem “as pequenas pátrias” (conforme a sequência final), fazem questão de manter as suas distâncias relativamente a instituições, poderes e artefactos mais ou menos sublimes. 



O Jogo das Comparações é um excelente exemplo da poética de Inês Lourenço e chega-nos às mãos depois de viver a sua própria história: “habent sua fata libelli”, como se constata desde tempos remotos. Esteve para ser publicado com a chancela da “& etc.” (como alguns dos títulos imediatamente anteriores da autora), mas, já em fase final de produção, tal acabou por não acontecer, pela circunstância do desaparecimento do editor, Vítor Silva Tavares, e a extinção da sua, aliás insubstituível, actividade “subterrânea”. É agora muito bem acolhido pela Companhia das Ilhas (e envolvido, na contra-capa, por uma fotografia de Susana Paiva). Vejo-o como um exercício de apuro e estilização de muitos dos motivos desde sempre presentes nesta poesia, numa espécie de música de câmara, após alguns livros a que poderíamos associar uma certa ressonância sinfónica. Caracteriza-o um expressivo efeito musical de surdina, no mesmo gesto em que retoma muitos dos veios temáticos da escrita da autora, desta vez organizados em três sequências, que estabelecem uma espécie de tríptico.


A segunda, “Teia”, está muito próxima dos seus bestiários, da atenção aos seres frágeis e plenos, afirmando uma insinuante nostalgia relativamente à competência vital dos bichos: “abandono” e “soberbas coisas ínfimas”, para retomar a epígrafe de Manoel de Barros. Mas trata-se de unir esses motivos essenciais ao percurso biográfico e a “cenas primitivas” que se inscrevem na construção de uma identidade pessoal, como em “A Galinha” e “Teia”, ou, lembrando “Gatos e Camélias” e “Animal Verde”, balizam pequenas descobertas e sensibilidades do quotidiano do sujeito poético. Encontramos ainda uma subtil parábola política sobre a inteireza e integridade das existências (“No Tempo em Que os Gatos eram Inteiros”), bem como a mordacidade que caracteriza frequentemente uma escrita que vem prolongar a longuíssima tradição satírica da poesia portuguesa. Por sua vez, “Galgos”, “Equus”, “Taurus” ou “Serpens” transplantam o concreto biológico da vida mais vital, o mais chão fluir dos dias, para uma inteligibilidade mítica ou estética.