sublinhados & notas
O JOGO DO SÉRIO
As ficções deste livro instalam uma
verdadeira armadilha a apresentadores incautos, porque, pela sua complexidade e
efeito de surpresa, estabelecem um jogo, não isento de perigos, com o leitor.
Não é que não estivéssemos avisados pela epígrafe de Machado de Assis: “O
melhor drama está no espectador e não no palco”. Uma após outra, as narrativas
avançam por entre fronteiras do sentir
e do pensar - para nos cingirmos a
categorias convencionais. Expulsos de territórios de conforto literário e
existencial, somos, então, conduzidos a zonas-limite, terras de ninguém,
lugares que não são fáceis de habitar. Provocação e desafio, exactamente como
no Jogo do Sério.
O Jogo
do Sério - conhecem? Alguém olha alguém nos olhos, numa quase perfeita
simetria, como num espelho vivo e inquieto. E nesse jogo a seriedade desemboca
no riso e o riso (a hipótese do riso, o seu esforçado adiamento) é levado a
sério, como se fosse um caso de vida ou de morte. Mas é só um jogo, e depois
tudo sempre recomeça. Lembrei-me deste exercício a propósito das ficções de
André Domingues, como se fosse a ponta de um fio, estratagema para começar a
deslindar o objecto inquietante. Olhos nos olhos com o leitor, um jogo sério,
com a velha virtude da “gravitas” e, profundamente embrenhado nisso, um imenso
sentido lúdico. Fica a dúvida: jogamos a sério (porque jogar é um caso sério, como
acontece com as crianças) ou é a seriedade apenas uma brincadeira, algo afinal
descartável e necessariamente relativo? Adiar o nosso riso, a descompostura que
desmancha a pose de estátua - é o que aqui se faz com virtuosismo e, entretanto,
somos alvo, nesse jogo, de um percurso de reflexão e sensibilidade que nos
transforma. “Dramas de Companhia”- já no título o sério e o lúdico, a
brincadeira fonética que aproxima angústia existencial e sentido de irrisão. Poderíamos
recordar um jogo semelhante que dá o título a uma obra de um autor que (suponho)
terá algo a ver com a família literária destes textos: Rayuela de Julio Cortázar. “Rayuela” - o nosso “jogo da macaca”,
que é também, simbolicamente, como aqui, um jogo do mundo entre a terra e o
céu, em percursos de habilidade e risco.
Uma outra forma de me aproximar do livro
passa por um poema do espanhol Blas de Otero (1916-1979), que me lembra uma das
razões por que gosto destes textos: “Tu seno izquierdo”, incluído em Hojas de Madrid con La Galerna:
TU SENO
IZQUIERDO
Cuántos
problemas tiene el mundo, el hombre, el espíritu santo.
Si no hubiera problemas habría que inventarlos a fin de resolverlos.
Es el problema por el problema -algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado, superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una estufa.
Yo amo los problemas como a tu seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
Si no hubiera problemas habría que inventarlos a fin de resolverlos.
Es el problema por el problema -algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado, superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una estufa.
Yo amo los problemas como a tu seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
Impõe-se o valor do problema pelo problema,
superando um mundo liso, aborrecido e normalizado, na busca do mais essencial
(o seio), mas também do único, do irredutível - precisamente o seio esquerdo,
não o outro, por capricho e apego ao singular, uma precisão que é também muito
frequente no livro que nos ocupa. O esquerdo, que é, pela sua simbologia, o
controverso, o provocatório, o desalinhado, o que se afasta do consensual
caminho do bem.
Este livro cumpre uma função extraordinária da literatura (no preciso
sentido do termo) - colocar questões, deslocar o olhar, experimentar diferentes
pontos de vista, baralhar linguagens, dar de novo o jogo, mudar os trunfos.
Resistir às versões correntes e normalizadas do mundo, à chamada “vida real”,
às narrativas dominantes, ao senso mais comum. Isso implica, de algum modo,
retomando a epígrafe de Clarice Lispector, uma “verdade inventada”. Trata-se,
ao contrário do que se pretende na vida útil (digamos assim), de ligar o
“complicador”- nada de “simplex”. Porque a vida é subtil. Como encontramos numa
canção de Chico Buarque, em parceria com Gilberto Gil: “Talvez o mundo não seja
pequeno / nem seja a vida um fato consumado”.
Barthes fala-nos de “efeito de real” e poderíamos ter aqui em conta outros “efeitos de real”, de reais
alternativos, num sucessivo urdir e desarmar de pactos de leitura, inumeráveis jogos
de expectativa com o leitor. E desse modo se cumpre uma vocação literária:
interrogar, desalienar, funcionar por redução ao absurdo, experimentar tal qual num
laboratório, colocando questões não formuladas nem óbvias.
Interessa-me também neste livro o perfil
da figura do “escritor”, que descortinamos em vários textos, como acontece com
os fotógrafos que deixam (em estudado descuido) a sua sombra na imagem. Em “A
Natureza de um Escritor” (p.36), temos uma normalidade desvitalizada e sagrada,
uma espécie de desaceleração para ver melhor, uma pistola carregada de verdade,
mas incapaz, apesar de brilhante; algo de escultórico e hiper-real, concentração
de energia, lucidez, quer dizer, luz excessiva sobre as coisas, deixando ver e,
ao mesmo tempo, cegando, qualquer coisa como simulacros reais. Em “O Reincidente”
(p.40), uma identificação com a desfocagem e a velocidade, uma paralaxe que é
essencial ao escritor, uma decisiva não conformidade, disformidade, uma não
integração próxima da condenação ao exílio. Em “Um Escritor à Chuva” (p.
65), um projecto de mortalidade (sim, “mortalidade”) risível - fazer corpo com
a tempestade, disfarçar nela as pequenas e íntimas lágrimas. Escrever é também
uma questão de vampirismo básico, com alguma violência e traumatismo (leia-se
“Literatura para Vampiros”, na p. 63).
Impõe-se a qualidade e espessura desta
escrita, em tempos tão pragmáticos e que cultivam o brilho da aparência e da
superfície. André Domingues é um estilista, e com todo o direito a sê-lo (para
parafrasear os versos de Campos sobre si enquanto “doido”, em “Lisbon
Revisited”, de 1923), espécie rara de escritor em extinção, circunstância que,
estou certo, lhe vai custar alguns leitores. Há aqui uma afinidade com um
Barroco essencial que sabe que, no lance das palavras, se joga a própria vida.
O investimento linguístico não é fútil, mas inerente ao processo de
questionação, e é consciência aguda de vazio ou noção de relatividade, jogo da
nossa finitude com o infinito envolvente. Mas não se trata de uma escrita
prolixa (pelo contrário): é rigorosa, cirúrgica, ferozmente exacta; aliás, o
excesso de lógica, de precisão, de lucidez é que nos conduz a uma espécie de
loucura branca, a uma quase pessoana dor de pensar. Atravessamos um estilo que se faz de associações inesperadas, na confluência de inusitados campos
semânticos, vocabulário dito literário com o científico, o mais quotidiano com
o mais erudito, o concreto com o abstracto, em busca de novas potencialidades
expressivas. Daqui resulta uma sugestiva plasticidade, algo de escultórico,
como atrás se assinalou.
Em articulação com tudo isto,
evidencia-se a originalidade do ponto de vista - surpreende-nos um tom
adquirido e inconfundível, uma estratégia de escrita reconhecível e credível, entre
a lógica e a loucura, no fio da navalha. Estes dramas resultam de uma
imaginação sensível (apoiada no concreto, no propriamente narrativo) e de
uma imaginação teórica (uma capacidade especulativa, de propor modelos de
abordagem) que dialogam profundamente entre si. É uma escrita muito visual (com
imagens fortes) e muito abstracta, capaz de captar flagrantes de vida e, ao
mesmo tempo (no mesmo movimento e no centro disso), extremamente especulativa.
Ver, viver e pensar estimulam-se entre si. E, então, podemos dizer que é típico
André Domingues. Ponto. Contudo, apercebemo-nos desta originalidade também em
função de uma genealogia literária, de uma muito boa, mas inquietante, companhia.
Poderíamos falar de autores sul-americanos, de algum surrealismo, de Cortázar (do
seu conceito de conto e de fantástico), de algum Borges (a questão da
meta-literatura), das topografias imaginárias e dos jogos com o leitor de
Calvino, de Kafka e da sua somatização grotesca da angústia e do mau-estar
existencial, de Nabokov ou Vila-Matas, ou ainda de uma longa tradição de
utopias e distopias (e, se começamos com listas, elas são, por definição,
incompletas e injustas).
No contexto português, é uma escrita
rara - lembramo-nos de Mário-Henrique Leiria, das Tisanas de Ana Hatherly, de Alberto Pimenta, mais recentemente de
algum Gonçalo M. Tavares ou de Rui Manuel Amaral. Encontramos um ar de família,
mas temos um tom muito pessoal. André Domingues. Ponto.
Finalmente, diria que gosto deste livro
pela sua estratégia narrativa, elaborando sucessivas metáforas, alegorias e
parábolas da condição humana, mas sem o “pathos”, os protocolos da seriedade. A
metáfora que implica o risco da imaginação, que tem algo de epifânico e se
traduz numa afirmação ontológica, e a alegoria enquanto inventário da perda, de
destroços e restos. As sucessivas parábolas que não fixam, contudo, uma
verdade, uma moral, mas que mantêm a ambiguidade, a densidade das existências.
Encontramos os temas de sempre, o amor,
a morte, a passagem do tempo, conjugados com a aproximação a questões candentes
da nossa contemporaneidade (por exemplo, a virtualização do real ou a sociedade
do espectáculo e do consumo). A título de inventário, poderemos referir algumas
constelações temáticas, mutuamente permeáveis, que dão conta da abrangência
destes relatos, muito embora seja vocação de cada um deles a proposta de um
universo autónomo ou paralelo. A escrita, a leitura, a literatura (e poderíamos
aqui sublinhar as ficções de motivo pessoano- “Personne”- p. 21, “A Filha da
Lavadeira” - p. 86). Múltiplas imagens da condição humana, questões de
identidade, angústias várias (por exemplo, “O Náufrago ”- p.13, “O Dragão de
Komodo”- p.10, “Personagens Secundárias”- p.23, “Memento Mori”- p.45,
“Esperanza”- p. 66). O sublinhar das fracturas a uma normalidade alienante, que
cabem, com frequência, ao olhar infantil ou apaixonado (por exemplo, em “Olhares
Canibais”- p. 17, “Um Confronto de Majestades”- p. 51, “O Fugitivo”- p. 59, “Retrato
de Menina Triste com Balão”- p. 83, “Pela estrada Fora”- p. 85). Utopias e
distopias várias, em que nos aproximamos de alguma estética da crueldade (por
exemplo, em “Tristeza Apocalíptica”- p. 43, “Notas de um Suicida”- p.9, “O
Paradoxo de Lichtenberg”- p. 20, “A Arte Involuntária”- p. 32 ou “A
imortalidade da Alma”- p. 49). Especulações filosóficas, metafísicas,
experimentalismos (por exemplo em “Este Século”- p. 82, “Elogio da Vaidade”- p.
84, “A Grande Apreensão”- p. 25, “A Estranha Máquina de Romant”- p. 68,
“Estreia Mundial”- p. 70, até numa história que se auto-destrói nas nossas próprias mãos:
“Projécteis para o Passado”- p. 24). O jogo das escondidas com o leitor, os efeitos de surpresa
(“O Fantasma Inquilino”- p. 18, “Visitas Inesperadas”- p. 30, “A Insónia de
Perpétuo”- p. 37, “O Projecto”- p. 52), em ficções que assumem inesperados
pontos de vista (tão inesperados que questionam a própria espessura do leitor)
ou sugestões de “mise en abime”. O cómico, a irrisão, o grotesco, a crítica
social ou às instituições literárias (como em “Os Supercentenários Voadores”-
p. 54 ou “Erro de Perspectiva”- p.69).
Em desespero de causa, tomemos uma ficção que assume muitas destas virtualidades: “Primal Scene” (p. 73). Trata-se, no
fundo, de uma nova modalidade ecfrástica, que faz explodir (implodir?) a obra
de arte inspiradora- “Le Déjeuner sur l’ Herbe” de Édouard Manet. Cruzam-se a
crítica social e a inquirição freudiana, o momento idílico e bucólico com o seu
obscuro latente, uma cena exemplar de que irrompe o interdito, o recalcado, a
desordem que desarruma a placidez campestre e os melhores sentimentos. Os
últimos gestos cabem, sintomaticamente, às crianças.
É mais do que tempo de concluir. Poderíamos recordar o texto “O
contágio” (p. 55). Nele, a Srª Worel sofre da Síndrome de Baudelaire e há
notícia da Doença de Artaud, do Mal de Cervantes, do Transtorno de Pessoa, do
Distúrbio de Strindeberg. A Srª Worel, percebêmo-lo, está afinal dentro de uma
ficção orquestrada por Vila- Matas. Deixo aqui um aviso- temo que um dia destes
possamos ser inoculados pelo Vírus André Domingues, altamente perigoso, e nos
surpreendamos, então, por estar a cumprir o enredo de uma sua ficção. É um
vírus que traz consigo, não obstante, um curioso efeito lateral: viver a vida
como o mais sério dos jogos.
jmts
da
apresentação na livraria Flâneur, Porto, 18/06/2016
Sem comentários:
Enviar um comentário