sublinhados & notas
Dramas de Companhia | André Domingues | col. azulcobalto 037 | Companhia das Ilhas | Lajes do Pico, 2016
O JOGO DO SÉRIO
As ficções deste livro instalam uma
verdadeira armadilha a apresentadores incautos, porque, pela sua complexidade e
efeito de surpresa, estabelecem um jogo, não isento de perigos, com o leitor.
Não é que não estivéssemos avisados pela epígrafe de Machado de Assis: “O
melhor drama está no espectador e não no palco”. Uma após outra, as narrativas
avançam por entre fronteiras do sentir
e do pensar - para nos cingirmos a
categorias convencionais. Expulsos de territórios de conforto literário e
existencial, somos, então, conduzidos a zonas-limite, terras de ninguém,
lugares que não são fáceis de habitar. Provocação e desafio, exactamente como
no Jogo do Sério.
O Jogo
do Sério - conhecem? Alguém olha alguém nos olhos, numa quase perfeita
simetria, como num espelho vivo e inquieto. E nesse jogo a seriedade desemboca
no riso e o riso (a hipótese do riso, o seu esforçado adiamento) é levado a
sério, como se fosse um caso de vida ou de morte. Mas é só um jogo, e depois
tudo sempre recomeça. Lembrei-me deste exercício a propósito das ficções de
André Domingues, como se fosse a ponta de um fio, estratagema para começar a
deslindar o objecto inquietante. Olhos nos olhos com o leitor, um jogo sério,
com a velha virtude da “gravitas” e, profundamente embrenhado nisso, um imenso
sentido lúdico. Fica a dúvida: jogamos a sério (porque jogar é um caso sério, como
acontece com as crianças) ou é a seriedade apenas uma brincadeira, algo afinal
descartável e necessariamente relativo? Adiar o nosso riso, a descompostura que
desmancha a pose de estátua - é o que aqui se faz com virtuosismo e, entretanto,
somos alvo, nesse jogo, de um percurso de reflexão e sensibilidade que nos
transforma. “Dramas de Companhia”- já no título o sério e o lúdico, a
brincadeira fonética que aproxima angústia existencial e sentido de irrisão. Poderíamos
recordar um jogo semelhante que dá o título a uma obra de um autor que (suponho)
terá algo a ver com a família literária destes textos: Rayuela de Julio Cortázar. “Rayuela” - o nosso “jogo da macaca”,
que é também, simbolicamente, como aqui, um jogo do mundo entre a terra e o
céu, em percursos de habilidade e risco.
Uma outra forma de me aproximar do livro
passa por um poema do espanhol Blas de Otero (1916-1979), que me lembra uma das
razões por que gosto destes textos: “Tu seno izquierdo”, incluído em Hojas de Madrid con La Galerna:
TU SENO
IZQUIERDO
Cuántos
problemas tiene el mundo, el hombre, el espíritu santo.
Si no hubiera problemas habría
que inventarlos a fin de
resolverlos.
Es el problema por el problema
-algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado,
superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una
estufa.
Yo amo los problemas como a tu
seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
Impõe-se o valor do problema pelo problema,
superando um mundo liso, aborrecido e normalizado, na busca do mais essencial
(o seio), mas também do único, do irredutível - precisamente o seio esquerdo,
não o outro, por capricho e apego ao singular, uma precisão que é também muito
frequente no livro que nos ocupa. O esquerdo, que é, pela sua simbologia, o
controverso, o provocatório, o desalinhado, o que se afasta do consensual
caminho do bem.
Este livro cumpre uma função extraordinária da literatura (no preciso
sentido do termo) - colocar questões, deslocar o olhar, experimentar diferentes
pontos de vista, baralhar linguagens, dar de novo o jogo, mudar os trunfos.
Resistir às versões correntes e normalizadas do mundo, à chamada “vida real”,
às narrativas dominantes, ao senso mais comum. Isso implica, de algum modo,
retomando a epígrafe de Clarice Lispector, uma “verdade inventada”. Trata-se,
ao contrário do que se pretende na vida útil (digamos assim), de ligar o
“complicador”- nada de “simplex”. Porque a vida é subtil. Como encontramos numa
canção de Chico Buarque, em parceria com Gilberto Gil: “Talvez o mundo não seja
pequeno / nem seja a vida um fato consumado”.