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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








quarta-feira, 6 de julho de 2011

O aprendiz de FEITICEIRO
teorias portáteis sobre poesia




O Poeta Dorme Sempre de Pé



Esta teoria portátil nasce de alguns acasos e circunstâncias. Tenho andado às voltas com um poema sobre a Torre dos Clérigos (tão vertical, como sabemos) e o seu autor, Nicolau Nasoni, que estará sepultado (supõe-se que na horizontal) em lugar incerto da igreja anexa, tudo pretensamente para a minha série de poemas Os Lugares Perdidos, cujo título talvez se perca mudando precisamente para O Lugar Que Muda o Lugar - mas nada disto é, de facto, muito rigoroso.

Tencionava também fazer uma entrada para esta etiqueta das Teorias Portáteis a partir de dois dos "senhores" de Gonçalo M. Tavares, Breton e Eliot. Neles, pelo que vislumbrei folheando os livros algures, recolheria duas visões bem destacadas acerca da palavra poética e do seu trabalho, diferentes e sugestivas formas de nos acercarmos da poesia e da sua hipotética essência. Dá-se a circunstância de ainda não ter tido dinheiro para comprar, logo de uma assentada, os dois senhores, e daí ter ido buscar um outro que, felizmente, já estava na estante: O Senhor Valéry. Na parábola que se segue (e que transcrevo com a devida vénia), pontuada pelos conhecidos desenhos de Rachel Caiano, encontro algumas pedras ou tijolos para o meu poema e uma arquitectónica teoria que aplico, de forma algo selvagem, à poesia:



O Cubo

O senhor Valéry dormia sempre de pé para não adormecer.

Ele explicava: Uma torre é feita para ver tudo. E acrescentava: Não há torres horizontais.

No entanto, provocado, o senhor Valéry decidiu desenhar uma torre deitada.

E depois explicou:

-Se a torre for um cubo vemos o mesmo, lá de cima, quer ela esteja na vertical ou na horizontal.

E desenhou uma torre em forma de cubo, na horizontal.

Depois desenhou uma torre em forma de cubo, na vertical.

-É igual, vêem?

E o senhor Valéry concluiu, dizendo, num tom filosófico e profundo:

- Se todas as coisas fossem cubos não haveria tantas discussões. E não existiria a dúvida.

Depois de uma pequena pausa, o senhor Valéry disse ainda:

-Não é por acaso que eu durmo sempre de pé.



Gonçalo M. Tavares, O Senhor Valéry, Caminho, 2002 - desenhos de Rachel Caiano






Há belíssimos poemas que servem só para neles adormecermos, há canções de embalar, mas uma das qualidades da poesia (sim, a palavra não é pacífica...) poderá ser a de dormir de pé. Ela propõe uma distância, um repouso do mundo apenas para nele contrariar a uniformidade, e então ver simplesmente tudo, até porque as dúvidas não permitem o horizontal sono profundo, pelo qual talvez (lá muito no fundo) anseie. É claro que, ao defendermos uma perspectiva tão elevada da poesia, dificilmente escaparemos à tipificação irónica de uma história exemplar.








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