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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








terça-feira, 26 de julho de 2011

as súbitas permanências




AURÉLIA DE SOUSA, NA VARANDA SOBRE O DOURO


É como quem se olhasse
num auto-retrato antigo e fluente

Ela sabe, como eu, da abatida constelação da casa

mas enfrenta-me, acabou de nascer

e abre imensamente os olhos
A névoa abraça-nos até ao osso

respira no ferro e no granito sob todas as mãos
Estranham-me a paixão dos retratos impassíveis

não sabem como visto

numa sombra perfeitamente de mim
a cidade de que parti e não conheço

e nem sequer posso esquecer
Gestos soltos noutra varanda, ao fim da mesma tarde

entre escadas e o cais e o ar e o mar
Ela sabe, como eu, tudo desta casa

mas não pára de me encarar
tudo, edificação de sombras lentamente sobre sombras
o frágil furacão que vai ficando
Estranham-me a roupa escura e os olhos claros

o camafeu que disfarça os dois seios
sim, eles estão cá, inteiros, e apenas sou
a mulher que passa pelos pátios


Por mim, distraem-me os mínimos trabalhos

certa jardinagem, grades sobre rendas

Algo sopra dos fundos dos quartos

fecha as janelas, murmura versos que não possas viver

Mas ela pinta intensamente e se assim te debruça

atravessa-te toda a água do rio
o espelho inteiro da tua vida



J.M.T.S. in As Súbitas Permanências, Quasi Edições, 2001 (aqui)






jmts








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