poesia . fotografia . & etc.
Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil
terça-feira, 26 de julho de 2011
AURÉLIA DE SOUSA, NA VARANDA SOBRE O DOURO
É como quem se olhasse
num auto-retrato antigo e fluente
Ela sabe, como eu, da abatida constelação da casa
mas enfrenta-me, acabou de nascer
e abre imensamente os olhos
A névoa abraça-nos até ao osso
respira no ferro e no granito sob todas as mãos
Estranham-me a paixão dos retratos impassíveis
não sabem como visto
numa sombra perfeitamente de mim
a cidade de que parti e não conheço
e nem sequer posso esquecer
Gestos soltos noutra varanda, ao fim da mesma tarde
entre escadas e o cais e o ar e o mar
Ela sabe, como eu, tudo desta casa
mas não pára de me encarar
tudo, edificação de sombras lentamente sobre sombras
o frágil furacão que vai ficando
Estranham-me a roupa escura e os olhos claros
o camafeu que disfarça os dois seios
sim, eles estão cá, inteiros, e apenas sou
a mulher que passa pelos pátios
Por mim, distraem-me os mínimos trabalhos
certa jardinagem, grades sobre rendas
Algo sopra dos fundos dos quartos
fecha as janelas, murmura versos que não possas viver
Mas ela pinta intensamente e se assim te debruça
atravessa-te toda a água do rio
o espelho inteiro da tua vida
quarta-feira, 6 de julho de 2011
teorias portáteis sobre poesia
O Poeta Dorme Sempre de Pé
Esta teoria portátil nasce de alguns acasos e circunstâncias. Tenho andado às voltas com um poema sobre a Torre dos Clérigos (tão vertical, como sabemos) e o seu autor, Nicolau Nasoni, que estará sepultado (supõe-se que na horizontal) em lugar incerto da igreja anexa, tudo pretensamente para a minha série de poemas Os Lugares Perdidos, cujo título talvez se perca mudando precisamente para O Lugar Que Muda o Lugar - mas nada disto é, de facto, muito rigoroso.
O Cubo
O senhor Valéry dormia sempre de pé para não adormecer.Ele explicava: Uma torre é feita para ver tudo. E acrescentava: Não há torres horizontais.
No entanto, provocado, o senhor Valéry decidiu desenhar uma torre deitada.E depois explicou:
-Se a torre for um cubo vemos o mesmo, lá de cima, quer ela esteja na vertical ou na horizontal.E desenhou uma torre em forma de cubo, na horizontal.
Depois desenhou uma torre em forma de cubo, na vertical.-É igual, vêem?
E o senhor Valéry concluiu, dizendo, num tom filosófico e profundo:- Se todas as coisas fossem cubos não haveria tantas discussões. E não existiria a dúvida.
Depois de uma pequena pausa, o senhor Valéry disse ainda:-Não é por acaso que eu durmo sempre de pé.
Gonçalo M. Tavares, O Senhor Valéry, Caminho, 2002 - desenhos de Rachel Caiano
Há belíssimos poemas que servem só para neles adormecermos, há canções de embalar, mas uma das qualidades da poesia (sim, a palavra não é pacífica...) poderá ser a de dormir de pé. Ela propõe uma distância, um repouso do mundo apenas para nele contrariar a uniformidade, e então ver simplesmente tudo, até porque as dúvidas não permitem o horizontal sono profundo, pelo qual talvez (lá muito no fundo) anseie. É claro que, ao defendermos uma perspectiva tão elevada da poesia, dificilmente escaparemos à tipificação irónica de uma história exemplar.