jmts
poesia . fotografia . & etc.
Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
domingo, 5 de fevereiro de 2017
Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia
O que nos faz o encanto de certas fotografias? O que nos prende nelas, não nos deixa desviar os olhos, parar de olhar? O que depois nos leva a fechá-los intensamente, prolongando-as muito, sonhando o resto?
Há, de facto, questões da estética, das regras fotográficas e da sua transgressão, incidências da Sociologia e da História. Sim, tempos difíceis, o "magala" e a "sopeira", uma tipologia a traço muito grosso que é o contrário do que sinto por esta imagem e os seres nela representados; há um país pobre e cinzento sem opção, alguma coisa de “novo cinema português"; há até uma extraordinária simbólica visual, a que aproxima o homem e a mulher nos seus cinzentos afins, unidos e perdidos na poeira etérea do mundo em volta, elevação e risco, levitação por sortilégio do amor, a mão que insiste em se prender às grades. Ainda assim, tratando-se de fotografia, pode haver outras intensidades. Punctum. Eu andava por ali, criança, naquelas ruas lá em baixo, o mundo estava suspenso numa ponte, tão leve, tão pesado, algo estava a começar naquele dia, e só sabemos que já não existe e hoje o reencontramos. Esse mundo suspenso numa ponte.
jmts
teorias portáteis sobre fotografia
O mundo suspenso numa ponte
Roland Barthes, em A Câmara Clara (Edições
70, 1981):
É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as receba como testemunhos políticos quer as aprecie como breves quadros históricos, porque é culturalmente (...) que eu participo nas figuras, nas expressões, nos gestos, nos cenários, nas acções. (p.46)
(...) o punctum: quer esteja cercado ou não, é um suplemento; é aquilo que eu acrescento à foto e que, no entanto, já lá está. (p.82)
O punctum é (...) uma espécie de fora-do-campo subtil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que dá a ver (...). (pp. 85-86)
-------------
Uma coisa é reconhecer, mais uma vez, a pertinência e imaginação teórica de um livro sobre fotografia, como é o caso deste, o seu jogo sedutor entre saber e desejo. Outra é perceber que é exactamente assim como ele diz, que se nos ajusta como perfeita luva. Por exemplo, numa fotografia de Bruno Barbey sinto essa ferida a que Barthes chama punctum, algo que encandeia, um campo cego: Porto, 1964.
Ponte Luiz I, Porto, 1964 . Bruno Barbey
O que nos faz o encanto de certas fotografias? O que nos prende nelas, não nos deixa desviar os olhos, parar de olhar? O que depois nos leva a fechá-los intensamente, prolongando-as muito, sonhando o resto?
Há, de facto, questões da estética, das regras fotográficas e da sua transgressão, incidências da Sociologia e da História. Sim, tempos difíceis, o "magala" e a "sopeira", uma tipologia a traço muito grosso que é o contrário do que sinto por esta imagem e os seres nela representados; há um país pobre e cinzento sem opção, alguma coisa de “novo cinema português"; há até uma extraordinária simbólica visual, a que aproxima o homem e a mulher nos seus cinzentos afins, unidos e perdidos na poeira etérea do mundo em volta, elevação e risco, levitação por sortilégio do amor, a mão que insiste em se prender às grades. Ainda assim, tratando-se de fotografia, pode haver outras intensidades. Punctum. Eu andava por ali, criança, naquelas ruas lá em baixo, o mundo estava suspenso numa ponte, tão leve, tão pesado, algo estava a começar naquele dia, e só sabemos que já não existe e hoje o reencontramos. Esse mundo suspenso numa ponte.
jmts
bruno barbey aqui
outras parábolas ópticas aqui
sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
sublinhados & notas
depoimento no dossier Eros e Literatura (revista digital Caliban: aqui)
- organização de Maria da Conceição Caleiro
eleger um autor e um livro
ou uma passagem de um autor
ou uma passagem de um autor
de língua portuguesa sentidos
como particularmente perturbantes
como particularmente perturbantes
EROS e LITERATURA
Escolho o célebre conto “Missa do Galo” de Machado de Assis. Trata-se, na
aparência, de uma simples conversa entre uma personagem feminina, Conceição,
uma “balzaquiana”, e o narrador, um jovem de dezassete anos. Abordam-se temas
anódinos e até com um pretexto da área do sagrado (a referida missa), mas é, na
verdade, um texto onde perpassa uma insinuante tensão erótica. Nele aprendemos
que o fundamental do erotismo talvez seja, afinal, conversa, minuciosos
preliminares do impossível: o entredito, o interdito, o inaudito, o
subentendido, numa coreografia de palavras e gestos marcada por aproximações e
afastamentos, alguns avanços, muitos recuos. Apuradas as contas, o exercício de
sedução tem como alvo o leitor, sendo a literatura o seu principal agente- só porque
ela assim tão profundamente tem a ver com os humanos e a dança com que eles se
repelem e logo atraem.
Também pensei no Amor de Perdição de Camilo, na relação Simão / Mariana,
por contraste com o par Simão / Teresa. É o conhecido “triângulo amoroso”, mas
a figura de Mariana impõe-se por si mesma. O romance vive de uma espécie de
tensão entre o corpo da paixão e, com Mariana, a paixão como corpo.
A perdição é também a desse encontro/ desencontro, Simão e Mariana enfim unidos
na turbulência fatal das águas, tudo finalmente à deriva. Retenho ainda um
diálogo entre Mariana e Simão, na sequência final do capítulo VIII, feito
simultaneamente de inocência e ousadia, pudor e oferecimento.
Estive quase a escolher Os Maias de Eça de Queiroz. Poderíamos falar da
perturbação erótica que perpassa no romance, reflectindo a partir de duas
descrições paradigmáticas- do incesto inconsciente (capítulo XIV) e do incesto
consciente (capítulo XVII), como se se tratasse de duas faces do erotismo
(espiritualidade vs. carnalidade).
Lembrei-me de Aparição de Vergílio Ferreira e da relação Alberto /
Sofia. Há nela uma dimensão erótica que não encontra lugar na tentativa, por
parte do protagonista, de compreensão do “eu” e do “mundo”, na sua busca de um
difícil apaziguamento. O erotismo é aí um sítio de absoluto desespero e
desamparo.
Devo ainda confessar que pensei no Delfim de Cardoso Pires e na sua
Maria das Mercês, na Judite de Nome de Guerra de Almada e em algumas
passagens de Confissões de Narciso do brasileiro Autran Dourado.
jmts
Masao Yamamoto
visto aqui
quinta-feira, 8 de dezembro de 2016
das palavras dos outros
REFLEXÃO SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA
A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também
como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura
ativa
de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva
sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio
é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura
têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil
futura
peça de museu
o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu?
ferreira gullar / in Em alguma parte alguma, Ulisseia, 2010
A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também
como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura
ativa
de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva
sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio
é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura
têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil
futura
peça de museu
o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu?
daniel moreira
"entre o território" (2014)
"entre o território" (2014)
sábado, 29 de outubro de 2016
das palavras dos outros
judith wright / in Animal Animal, Assírio & Alvim, 2005
tradução de José Alberto Oliveira
tradução de José Alberto Oliveira
CATATUAS NEGRAS
Cada género específico de tempo ou de luz
tem as suas criaturas. Elas esperam algures,
com se habitassem apenas o calor ou o frio,
o crepúsculo ou a madrugada e não conhecessem outro estado.
Depois, no tempo certo chegam, tímidas ou determinadas.
Assim, quando os grandes ventos áridos, ásperos como lixa,
se acalmaram, e o tempo mudou e vieram as nuvens
e outras aves se calaram em oração ou medo,
estas conheceram a sua hora. Antes que o primeiro clarão longínquo
se acendesse, ou o primeiro trovão pronunciasse o nome,
chegaram em voo cerrado, até que eu pude ouvir
as catatuas negras selvagens, sacudidas no cimo
das suas altas árvores, gritando o desassossego do mundo.
Kunihiro Amano
(xilogravura)
Cada género específico de tempo ou de luz
tem as suas criaturas. Elas esperam algures,
com se habitassem apenas o calor ou o frio,
o crepúsculo ou a madrugada e não conhecessem outro estado.
Depois, no tempo certo chegam, tímidas ou determinadas.
Assim, quando os grandes ventos áridos, ásperos como lixa,
se acalmaram, e o tempo mudou e vieram as nuvens
e outras aves se calaram em oração ou medo,
estas conheceram a sua hora. Antes que o primeiro clarão longínquo
se acendesse, ou o primeiro trovão pronunciasse o nome,
chegaram em voo cerrado, até que eu pude ouvir
as catatuas negras selvagens, sacudidas no cimo
das suas altas árvores, gritando o desassossego do mundo.
Kunihiro Amano
(xilogravura)
imagem vista aqui
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
oCorpodasLetras
vídeo e som: Hong Huo
poema: Su Shi (1037-1101|dinastia Song)
com Jiaxin Zeng
vídeo e som: Hong Huo
poema: Su Shi (1037-1101|dinastia Song)
com Jiaxin Zeng
visto aqui
segunda-feira, 29 de agosto de 2016
OTERCEIROTEXTO
A tradução de um poema de Sinéad Morrissey de novo na Enfermaria 6. "An Anatomy of Smell" pertence a Between Here and There, de 2002. É um livro em duas partes, uma espécie de díptico difícil: a primeira focada na Irlanda natal a que a autora regressa, depois de viver em paragens distantes, e a segunda significativamente intitulada "Japan". Trata-se de um poema que interroga as origens e a sua deriva, numa intensa e aguda sondagem do banal significativo. Como é também característico da autora, interessam-lhe os mecanismos da percepção e o amor, esse velho tema.
aqui
domingo, 31 de julho de 2016
das palavras dos outros
Vejo o meu filho mexer-se, enquanto sonha
Enquanto dorme, de lado, numa cama de motel
No quarto ao lado, um casal discute
Ele repete: «Então, Lorraina, não faças isso!»
Ela repete: «Porquê?»
Nadadores mergulham na piscina, lá fora
Nadando na noite
Nem uma só voz
Só
Os braços que batem a água
Enquanto
O miúdo estremece
Dá voltas com a cabeça na almofada
Há um sonho que passa dentro dele
A sua voz
Sem palavras
Os Grandes Montes Tetons assomam, de fora, à nossa janela
Sem neve
Azuis
O Rio Snake serpenteia à volta da nossa cama
Sibila para dentro de si mesmo
O tipo com o cinturão de cartucheira chega à janela e berra
«Mais cuidado com essa linguagem» para o casal que se trava de razões
O casal cala-se
Solta risinhos abafados
O rodeo acaba
Ouvem-se os camiões
O Café Elk Horn enche-se de montadores de touros
A águia voa no encalço de uma truta
Alguém deixa cair uma moeda na máquina do gelo
A máquina cumpre com um baque seco
Os nadadores deixam a piscina
Agora estão a falar
Mas não consigo entender as palavras
Os alces seguem para norte
(Quase que podemos ouvi-los)
O urso pardo segue para onde lhe apetece
(Ontem comeu três caminhantes)
O meu miúdo anda aos saltos, enquanto sonha
Uma espingarda dispara
O casal grita
O miúdo acorda
5/8/80
Jackson, Wyoming
sam shepard / in Crónicas Americanas, Difel, s.d.
(Tradução de José Vieira de Lima)
(Tradução de José Vieira de Lima)
Vejo o meu filho mexer-se, enquanto sonha
Enquanto dorme, de lado, numa cama de motel
No quarto ao lado, um casal discute
Ele repete: «Então, Lorraina, não faças isso!»
Ela repete: «Porquê?»
Nadadores mergulham na piscina, lá fora
Nadando na noite
Nem uma só voz
Só
Os braços que batem a água
Enquanto
O miúdo estremece
Dá voltas com a cabeça na almofada
Há um sonho que passa dentro dele
A sua voz
Sem palavras
Os Grandes Montes Tetons assomam, de fora, à nossa janela
Sem neve
Azuis
O Rio Snake serpenteia à volta da nossa cama
Sibila para dentro de si mesmo
O tipo com o cinturão de cartucheira chega à janela e berra
«Mais cuidado com essa linguagem» para o casal que se trava de razões
O casal cala-se
Solta risinhos abafados
O rodeo acaba
Ouvem-se os camiões
O Café Elk Horn enche-se de montadores de touros
A águia voa no encalço de uma truta
Alguém deixa cair uma moeda na máquina do gelo
A máquina cumpre com um baque seco
Os nadadores deixam a piscina
Agora estão a falar
Mas não consigo entender as palavras
Os alces seguem para norte
(Quase que podemos ouvi-los)
O urso pardo segue para onde lhe apetece
(Ontem comeu três caminhantes)
O meu miúdo anda aos saltos, enquanto sonha
Uma espingarda dispara
O casal grita
O miúdo acorda
5/8/80
Jackson, Wyoming
Edward Hopper
Gas, 1940
sábado, 23 de julho de 2016
sublinhados & notas
O JOGO DO SÉRIO
As ficções deste livro instalam uma
verdadeira armadilha a apresentadores incautos, porque, pela sua complexidade e
efeito de surpresa, estabelecem um jogo, não isento de perigos, com o leitor.
Não é que não estivéssemos avisados pela epígrafe de Machado de Assis: “O
melhor drama está no espectador e não no palco”. Uma após outra, as narrativas
avançam por entre fronteiras do sentir
e do pensar - para nos cingirmos a
categorias convencionais. Expulsos de territórios de conforto literário e
existencial, somos, então, conduzidos a zonas-limite, terras de ninguém,
lugares que não são fáceis de habitar. Provocação e desafio, exactamente como
no Jogo do Sério.
O Jogo
do Sério - conhecem? Alguém olha alguém nos olhos, numa quase perfeita
simetria, como num espelho vivo e inquieto. E nesse jogo a seriedade desemboca
no riso e o riso (a hipótese do riso, o seu esforçado adiamento) é levado a
sério, como se fosse um caso de vida ou de morte. Mas é só um jogo, e depois
tudo sempre recomeça. Lembrei-me deste exercício a propósito das ficções de
André Domingues, como se fosse a ponta de um fio, estratagema para começar a
deslindar o objecto inquietante. Olhos nos olhos com o leitor, um jogo sério,
com a velha virtude da “gravitas” e, profundamente embrenhado nisso, um imenso
sentido lúdico. Fica a dúvida: jogamos a sério (porque jogar é um caso sério, como
acontece com as crianças) ou é a seriedade apenas uma brincadeira, algo afinal
descartável e necessariamente relativo? Adiar o nosso riso, a descompostura que
desmancha a pose de estátua - é o que aqui se faz com virtuosismo e, entretanto,
somos alvo, nesse jogo, de um percurso de reflexão e sensibilidade que nos
transforma. “Dramas de Companhia”- já no título o sério e o lúdico, a
brincadeira fonética que aproxima angústia existencial e sentido de irrisão. Poderíamos
recordar um jogo semelhante que dá o título a uma obra de um autor que (suponho)
terá algo a ver com a família literária destes textos: Rayuela de Julio Cortázar. “Rayuela” - o nosso “jogo da macaca”,
que é também, simbolicamente, como aqui, um jogo do mundo entre a terra e o
céu, em percursos de habilidade e risco.
Uma outra forma de me aproximar do livro
passa por um poema do espanhol Blas de Otero (1916-1979), que me lembra uma das
razões por que gosto destes textos: “Tu seno izquierdo”, incluído em Hojas de Madrid con La Galerna:
TU SENO
IZQUIERDO
Cuántos
problemas tiene el mundo, el hombre, el espíritu santo.
Si no hubiera problemas habría que inventarlos a fin de resolverlos.
Es el problema por el problema -algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado, superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una estufa.
Yo amo los problemas como a tu seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
Si no hubiera problemas habría que inventarlos a fin de resolverlos.
Es el problema por el problema -algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado, superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una estufa.
Yo amo los problemas como a tu seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
Impõe-se o valor do problema pelo problema,
superando um mundo liso, aborrecido e normalizado, na busca do mais essencial
(o seio), mas também do único, do irredutível - precisamente o seio esquerdo,
não o outro, por capricho e apego ao singular, uma precisão que é também muito
frequente no livro que nos ocupa. O esquerdo, que é, pela sua simbologia, o
controverso, o provocatório, o desalinhado, o que se afasta do consensual
caminho do bem.
Este livro cumpre uma função extraordinária da literatura (no preciso
sentido do termo) - colocar questões, deslocar o olhar, experimentar diferentes
pontos de vista, baralhar linguagens, dar de novo o jogo, mudar os trunfos.
Resistir às versões correntes e normalizadas do mundo, à chamada “vida real”,
às narrativas dominantes, ao senso mais comum. Isso implica, de algum modo,
retomando a epígrafe de Clarice Lispector, uma “verdade inventada”. Trata-se,
ao contrário do que se pretende na vida útil (digamos assim), de ligar o
“complicador”- nada de “simplex”. Porque a vida é subtil. Como encontramos numa
canção de Chico Buarque, em parceria com Gilberto Gil: “Talvez o mundo não seja
pequeno / nem seja a vida um fato consumado”.
terça-feira, 12 de julho de 2016
sexta-feira, 10 de junho de 2016
música de anónimo
CATÁLOGO DE PÁSSAROS DE O. MESSIAEN
Exactamente setenta e sete pássaros diferentes
repartidos por sete livros de música
Não chega só uma vida para contar a plumagem
as películas esvoaçantes do breu real
ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos
Volteiam de transparência em transparência
trespassam o dia, bicam o nó da sombra
Aguardamos sob o peso do sol, névoas até aos ossos
preenchemos depois as noites com cifras de aérea gravidade
humilde exercício, transposição luminosa
É o mundo todo visível, questão de paciência
invisível totalmente, olhos recomeçados?
Pequenos factos radiantes
corações de tempos demasiado vivos
registos sobreagudos, coisas de atenta surdez
Sobrevoam os intervalos mais discretos da terra
alheios ao peregrino, humano sobressalto
anjos ou penas pesadas da neve
Já nos visitavam nas coutadas da Silésia
pedradas, tiros, valas comuns em Stalag VIII A
A cotovia dos campos, o papa-figos dourado
maçarico real, chasco preto, melro azul
J.M.T.S. in Música de Anónimo

CATÁLOGO DE PÁSSAROS DE O. MESSIAEN
Exactamente setenta e sete pássaros diferentes
repartidos por sete livros de música
Não chega só uma vida para contar a plumagem
as películas esvoaçantes do breu real
ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos
Volteiam de transparência em transparência
trespassam o dia, bicam o nó da sombra
Aguardamos sob o peso do sol, névoas até aos ossos
preenchemos depois as noites com cifras de aérea gravidade
humilde exercício, transposição luminosa
É o mundo todo visível, questão de paciência
invisível totalmente, olhos recomeçados?
Pequenos factos radiantes
corações de tempos demasiado vivos
registos sobreagudos, coisas de atenta surdez
Sobrevoam os intervalos mais discretos da terra
alheios ao peregrino, humano sobressalto
anjos ou penas pesadas da neve
Já nos visitavam nas coutadas da Silésia
pedradas, tiros, valas comuns em Stalag VIII A
A cotovia dos campos, o papa-figos dourado
maçarico real, chasco preto, melro azul
J.M.T.S. in Música de Anónimo

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