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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia

 

 

 

 António Bracons ou A  Edificação do Silêncio

 

 

António Bracons

Sobre o Silêncio, ed. autor, 2020 
Ingenium, ed. autor, 2022

  © fotografias de António Bracons 
 

Há toda uma vida da fotografia que corre à margem dos grandes mecanismos de marketing e distribuição. Como noutras artes (por exemplo, a da poesia), a massificação cultural abandonou a circuitos independentes muito do que de mais significativo, intenso e perene se vai produzindo. Aliás, António Bracons, o autor dos dois fotolivros que aqui folheamos, presta um discreto mas precioso serviço público na sua página virtual Fascínio da Fotografia1, que acompanha esse pulsar quotidiano dos apaixonados da arte fotográfica.

 

 Sobre o Silêncio 2 e Ingenium 3 têm em comum o rigor, o despojamento, a subtileza e a intensidade das suas opções fotográficas e de edição. São objectos personalizados, na escolha de papéis, texturas, grafismo, na respiração das imagens; chegam-nos em exemplares numerados e assinados, que podem incluir uma prova original. 
 
Se Sobre o Silêncio propõe uma leitura fotográfica do conceito tão complexo e até paradoxal que dá o título à obra (abordagem complementada por sugestivos e informados textos do autor sobre o tema, que constituem um pequeno caderno que integra o projecto), já o livro mais recente parte do conceito e da prática da engenharia. Não obstante as visíveis (é o termo) diferenças, subtis laços unem os dois projectos, denunciando a marca de água do autor. São, em ambos os casos, fotografias a preto e branco de uma grande austeridade e que, a partir de materialidades bem identificáveis, sugerem, até por alguma ambiguidade e descontextualização procuradas, uma dimensão outra, algo que está antes ou depois do puro visível.  
 
Temos de reconhecer que Sobre o Silêncio é já um livro de engenharia, no sentido mais lato do termo, não só por incluir, em determinados momentos do seu percurso, imagens de monumentos, mas também pelas suas estratégias de construção e desconstrução em torno do silêncio. Ora se silencia, ora se ergue o silêncio. É que o silêncio nunca é propriamente um vazio, mas limiar, um processo relativo ao que se edifica ou despoja, porque, como nos diz Octavio Paz, não pode deixar de motivar palavras, novas imagens, signos: “Y aun el silencio dice algo, pues está preñado de signos.” 4 
 
 
 
 

 
 
Silêncio é, desde logo, uma questão musical, alternância entre som e pausa, e o livro tem essa respiração ritmada pelas páginas em branco, que sinalizam, de algum modo, o silêncio em si, homólogo ao invisível, tudo aquilo que, ainda assim, se torna horizonte e se nos aproxima como experiência singular. Começamos com uma pequena imagem de nuvens que, na linha das ideias que acabámos de propor, nos traz à memória as “equivalências” de Stieglitz. O irrepresentável toma forma no incorpóreo das nuvens, cuja matéria se nos afigura como imponderável imagem do próprio fluir vital. Mas logo se segue uma fotografia que ocupa praticamente toda a dupla página, em que a terra, um caminho, conduzem precisamente às nuvens. Ao longo de todo o livro existe essa espécie de inquietação que alterna escalas, típica de quem procura e inevitavelmente suscita as diversas estações de uma íntima peregrinação.  
 
A sequência inicial de imagens implica a imersão na natureza, uma espécie de despojamento do “eu” num mundo que nesse mesmo movimento de alguma forma se suspende também, e assim se acede a uma dimensão a tudo envolvente, naquele sentido em que Heidegger nos diz que «o mundo desaparece quando nos lançamos nele»5: ao rés da luz e sombra das folhagens, mergulhando na infinita proliferação de uma floresta, ascendendo a vastos panoramas, onde o humano e as suas construções, discretas e ínfimas, apenas sinalizam a desmedida da natureza. Este último é um ponto de vista que encontramos já, noutro contexto, numa série anterior do autor (O Olhar de D. João, de 1997): o poder de um olhar de carácter demiúrgico, a partir do qual ganham sentido as particularidades que a fotografia lentamente nos deixa descobrir e habitar, ao mesmo tempo que adestra a capacidade de alcançarmos infinitudes. É uma relação com o mundo que António Bracons relaciona com o silêncio e a busca interior, o encontro consigo próprio (cf. brochura anexa ao livro, em “Algumas reflexões sobre o Silêncio”). Esta modalidade de representação da paisagem acerca-se de uma topografia, digamo-lo assim, do divino, de uma espécie de trânsito vertical entre o mundo e a sua transcendência. A este propósito, destacaríamos imagens que parecem circunscrever no território o efeito de forças superiores: resplandecente área de neve na terra escura, um tanque que reflecte e parece atrair as energias cósmicas, a humilde e humana demarcação de um rio, a reverberação quase imperceptível de um povoado nas faldas de uma montanha vulcânica, com a sua coroa de nuvens. 
 
 
 

 
 
 


 
Mas neste livro o segundo momento de aproximação fotográfica ao silêncio tem a ver, não já tanto com a natureza e o silenciamento, mas com edificação, arquitecturas que o possam acolher, convocar ou com ele interagir. Vemos pedras consumidas pela luz; os quadrados de um claustro que elabora uma intimidade cósmica e ressonâncias divinas; cúpulas que minuciosamente constroem o equilíbrio de um ponto suspenso, no limite o olho divino sugerido por um panteão, numa imagem que parece saltar das páginas. É-nos deste modo dada a ver a magnificência do silêncio, mas em contraponto com imagens de extrema contenção, em que ele fica na latência dos espaços, no vórtice de uma escada em caracol que torna vertiginosa a consciência ou nas duas pequenas e magníficas imagens em que se mostra visível nos discretos efeitos de “mise-en-abîme” e “trompe l’oeil”: despojamento de um quarto em que se abre, misticamente, uma porta, ou na fotografia final (em diálogo subtil com a que abre o livro), uma verdadeira parábola óptica onde o dentro e o fora, o visível e o invisível, a luz e a sombra se nos indeterminam numa espécie de espacialidade amplificada.  
 
 
 

 
 
 
Em Ingenium, como no livro anterior, está em questão dar corpo, visibilidade e presença ao vazio, a um espaço sempre em potência, por virtude de um imaginar que desse modo encontra a sua inscrição no mundo, prolongando as palavras de Gonçalo M. Tavares que inspiram o projecto; é o que está muito bem representado nas imagens iniciais, em que o puro ar parece objecto de empreitadas de sustentação.
 
 
 

 
 
Mas sublinhemos o que, na nossa perspectiva, há neste livro de mais singular. Para lá de um rigoroso e sugestivo trabalho de documentação de obras de engenharia, que nos dá imagens de um belíssimo apuro formal, surpreendemos uma narrativa subjacente. Não podemos deixar de reconhecer uma estética das ruínas e o exercício contido de alguma nostalgia. A imagem escolhida para a capa é disso sintomática: um ornamento derrubado, uma espécie de asa destroçada, vestígio de anjos caídos; ou notemos aquela estrela associada a uma divisa moral e progressista, agora abandonada e etiquetada. São sinais de uma descida aos infernos que o livro, com o engenho e as virtualidades da fotografia, tem a arte de suscitar. Acercamo-nos de um caos primordial, restos de coisas, filamentos, manequins decepados, objectos calcinados, a grande evidência do pó de que tudo vem e para onde tudo vai. E há sombras pesadas, grades, noite, focos inquietantes. Não podemos deixar de nos lembrar das fotografias nocturnas de Coimbra que o autor nos dá em projectos anteriores (Alguns Passos na Alta de Coimbra, 1990; De Noite e ao Amanhecer - Quatro memórias da Alta de Coimbra, 1990). No entanto, a demanda é como a de Orfeu: por virtude da arte retornar à vida e à luz, ascender do caos à racionalidade e à proporção; engenho, esforço, estruturas de sustentação e, enfim, a sólida abstracção das imagens finais, intensificada pelo formato quadrado que percorre todo o livro, enquanto permanência e ordem, mas também na sua simbologia de uma perfeição que várias espiritualidades adoptaram. 
 
 
 




Encerremos o folhear destes livros contemplando as três fotografias finais de Ingenium, que estabelecem um percurso que sintetiza de uma forma particularmente expressiva o que nos parece ser o impulso íntimo do trabalho de António Bracons: primeiramente, um homem encerrado e perdido no mundo, vítima de uma grelha inextricável; depois, a construção de formas, de novos equilíbrios que abrem espaços; enfim, um movimento ascensional, das trevas à infinita subtileza luminosa de degraus que nos levam ao que ainda não é visível por excesso de brilho, àquilo a que talvez possamos chamar simplesmente silêncio.

 



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1- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/

2- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2020/12/07/antonio-bracons-sobre-o-silencio-2020/

3- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2022/09/12/antonio-bracons-ingenium-2022/

4- Octavio Paz, El arco y la lira, 3ª. ed., México, Fondo de Cultura Economica, 1993, pp. 29-31

5- Citado em Erling Kagge, Silêncio na era do ruído, Quetzal, 2017, p. 23

 

 jmts.

 

 

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