Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia
António Bracons ou A Edificação do Silêncio
António Bracons
Sobre o Silêncio, ed. autor, 2020
Ingenium, ed. autor, 2022
© fotografias de António Bracons
Há toda uma
vida da fotografia que corre à margem dos grandes mecanismos de marketing e distribuição. Como noutras artes
(por exemplo, a da poesia), a massificação cultural abandonou a circuitos
independentes muito do que de mais significativo, intenso e perene se vai
produzindo. Aliás, António Bracons, o autor dos dois fotolivros que aqui
folheamos, presta um discreto mas precioso serviço público na sua página
virtual Fascínio da Fotografia1,
que acompanha esse pulsar quotidiano dos apaixonados da arte fotográfica.
Sobre o Silêncio 2 e Ingenium 3 têm em comum o rigor, o despojamento, a
subtileza e a intensidade das suas opções fotográficas e de edição. São
objectos personalizados, na escolha de papéis, texturas, grafismo, na
respiração das imagens; chegam-nos em exemplares numerados e assinados, que
podem incluir uma prova original.
Se Sobre o Silêncio propõe uma leitura
fotográfica do conceito tão complexo e até paradoxal que dá o título à obra (abordagem
complementada por sugestivos e informados textos do autor sobre o tema, que
constituem um pequeno caderno que integra o projecto), já o livro mais recente
parte do conceito e da prática da engenharia. Não obstante as visíveis (é o
termo) diferenças, subtis laços unem os dois projectos, denunciando a marca de
água do autor. São, em ambos os casos, fotografias a preto e branco de uma
grande austeridade e que, a partir de materialidades bem identificáveis, sugerem,
até por alguma ambiguidade e descontextualização procuradas, uma dimensão outra, algo que está antes ou depois do puro visível.
Temos de
reconhecer que Sobre o Silêncio é já
um livro de engenharia, no sentido mais lato do termo, não só por incluir, em
determinados momentos do seu percurso, imagens de monumentos, mas também pelas
suas estratégias de construção e desconstrução em torno do silêncio. Ora se
silencia, ora se ergue o silêncio. É que o silêncio nunca é propriamente um
vazio, mas limiar, um processo relativo ao que se edifica ou despoja, porque,
como nos diz Octavio Paz, não pode deixar de motivar palavras, novas imagens,
signos: “Y aun el silencio dice algo, pues está preñado de signos.” 4
Silêncio é,
desde logo, uma questão musical, alternância entre som e pausa, e o livro tem
essa respiração ritmada pelas páginas em branco, que sinalizam, de algum modo,
o silêncio em si, homólogo ao invisível, tudo aquilo que, ainda assim, se torna
horizonte e se nos aproxima como experiência singular. Começamos com uma
pequena imagem de nuvens que, na linha das ideias que acabámos de propor, nos
traz à memória as “equivalências” de Stieglitz. O irrepresentável toma forma no
incorpóreo das nuvens, cuja matéria se nos afigura como imponderável imagem do
próprio fluir vital. Mas logo se segue uma fotografia que ocupa praticamente
toda a dupla página, em que a terra, um caminho, conduzem precisamente às
nuvens. Ao longo de todo o livro existe essa espécie de inquietação que alterna
escalas, típica de quem procura e inevitavelmente suscita as diversas estações
de uma íntima peregrinação.
A sequência
inicial de imagens implica a imersão na natureza, uma espécie de despojamento
do “eu” num mundo que nesse mesmo movimento de alguma forma se suspende também,
e assim se acede a uma dimensão a tudo envolvente, naquele sentido em que
Heidegger nos diz que «o mundo desaparece quando nos lançamos nele»5:
ao rés da luz e sombra das folhagens, mergulhando na infinita proliferação de
uma floresta, ascendendo a vastos panoramas, onde o humano e as suas
construções, discretas e ínfimas, apenas sinalizam a desmedida da natureza. Este
último é um ponto de vista que encontramos já, noutro contexto, numa série
anterior do autor (O Olhar de D. João,
de 1997): o poder de um olhar de carácter demiúrgico, a partir do qual ganham
sentido as particularidades que a fotografia lentamente nos deixa descobrir e
habitar, ao mesmo tempo que adestra a capacidade de alcançarmos infinitudes. É
uma relação com o mundo que António Bracons relaciona com o silêncio e a busca
interior, o encontro consigo próprio (cf. brochura anexa ao livro, em “Algumas
reflexões sobre o Silêncio”). Esta modalidade de representação da paisagem acerca-se
de uma topografia, digamo-lo assim, do divino, de uma espécie de trânsito
vertical entre o mundo e a sua transcendência. A este propósito, destacaríamos
imagens que parecem circunscrever no território o efeito de forças superiores:
resplandecente área de neve na terra escura, um tanque que reflecte e parece
atrair as energias cósmicas, a humilde e humana demarcação de um rio, a
reverberação quase imperceptível de um povoado nas faldas de uma montanha
vulcânica, com a sua coroa de nuvens.
Mas neste
livro o segundo momento de aproximação fotográfica ao silêncio tem a ver, não
já tanto com a natureza e o silenciamento, mas com edificação, arquitecturas
que o possam acolher, convocar ou com ele interagir. Vemos pedras consumidas
pela luz; os quadrados de um claustro que elabora uma intimidade cósmica e
ressonâncias divinas; cúpulas que minuciosamente
constroem o equilíbrio de um ponto suspenso, no limite o olho divino sugerido
por um panteão, numa imagem que parece saltar das páginas. É-nos deste modo
dada a ver a magnificência do silêncio, mas em contraponto com imagens de
extrema contenção, em que ele fica na latência dos espaços, no vórtice de uma
escada em caracol que torna vertiginosa a consciência ou nas duas pequenas e magníficas
imagens em que se mostra visível nos discretos efeitos de “mise-en-abîme” e
“trompe l’oeil”: despojamento de um quarto em que se abre, misticamente, uma
porta, ou na fotografia final (em diálogo subtil com a que abre o livro), uma
verdadeira parábola óptica onde o dentro e o fora, o visível e o invisível, a
luz e a sombra se nos indeterminam numa espécie de espacialidade amplificada.
Em Ingenium, como no livro anterior, está
em questão dar corpo, visibilidade e presença ao vazio, a um espaço sempre em
potência, por virtude de um imaginar que desse modo encontra a sua inscrição no
mundo, prolongando as palavras de Gonçalo M. Tavares que inspiram o projecto; é
o que está muito bem representado nas imagens iniciais, em que o puro ar parece
objecto de empreitadas de sustentação.
Mas sublinhemos o que, na nossa
perspectiva, há neste livro de mais singular. Para lá de um rigoroso e
sugestivo trabalho de documentação de obras de engenharia, que nos dá imagens
de um belíssimo apuro formal, surpreendemos uma narrativa subjacente. Não
podemos deixar de reconhecer uma estética das ruínas e o exercício contido de
alguma nostalgia. A imagem escolhida para a capa é disso sintomática: um
ornamento derrubado, uma espécie de asa destroçada, vestígio de anjos caídos;
ou notemos aquela estrela associada a uma divisa moral e progressista, agora
abandonada e etiquetada. São sinais de uma descida aos infernos que o livro,
com o engenho e as virtualidades da fotografia, tem a arte de suscitar. Acercamo-nos
de um caos primordial, restos de coisas, filamentos, manequins decepados,
objectos calcinados, a grande evidência do pó de que tudo vem e para onde tudo
vai. E há sombras pesadas, grades, noite, focos inquietantes. Não podemos deixar de nos lembrar das
fotografias nocturnas de Coimbra que o autor nos dá em projectos anteriores (Alguns Passos na Alta de Coimbra, 1990; De Noite e ao Amanhecer - Quatro memórias da
Alta de Coimbra, 1990). No entanto, a demanda é como a de Orfeu: por
virtude da arte retornar à vida e à luz, ascender do caos à racionalidade e à
proporção; engenho, esforço, estruturas de sustentação e, enfim, a sólida
abstracção das imagens finais, intensificada pelo formato quadrado que percorre
todo o livro, enquanto permanência e ordem, mas também na sua simbologia de uma
perfeição que várias espiritualidades adoptaram.
Encerremos o
folhear destes livros contemplando as três fotografias finais de Ingenium, que estabelecem um percurso
que sintetiza de uma forma particularmente expressiva o que nos parece ser o
impulso íntimo do trabalho de António Bracons: primeiramente, um homem
encerrado e perdido no mundo, vítima de uma grelha inextricável; depois, a
construção de formas, de novos equilíbrios que abrem espaços; enfim, um
movimento ascensional, das trevas à infinita subtileza luminosa de degraus que
nos levam ao que ainda não é visível por excesso de brilho, àquilo a que talvez
possamos chamar simplesmente silêncio.
-----------
1- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/
2- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2020/12/07/antonio-bracons-sobre-o-silencio-2020/
3- https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2022/09/12/antonio-bracons-ingenium-2022/
4- Octavio
Paz, El arco y la lira, 3ª. ed.,
México, Fondo de Cultura Economica, 1993, pp. 29-31
5- Citado em
Erling Kagge, Silêncio na era do ruído,
Quetzal, 2017, p. 23
jmts.
outras parábolas ópticas aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário