das palavras dos outros
maria virgínia monteiro / Precário Registo, Universitária Editora, 2003
QUANDO
(..) quando os bosques
e os espaços se fundirem (...)
António Carlos Cheinho
quando eu não for
nem voz nem sombra
nem rir nem dor
não recusem de mim restos escolhos
nas coisas que amei
mas que guardei
como se nelas queimasse
mãos e olhos
se me deixarem ficar
eu ficarei
silenciosa ao vosso lado
e assim talvez
as coisas por mim falem
através
de fronteiras de outro espaço
alcançado
do que soube
do que calei
espalhe-se o segredo, dantes meu
arranque-se de sobre ele
qualquer véu
e não mais se cale
o mudo grito
libertem-se gavetas
do silêncio
porque pago foi já o preço alto
e sereno, sem raiva, sem sobressalto
o silêncio o som aflito
quer ser voz
como um eco de lembranças
voz inteira
dos espaços da portagem
na fronteira
dos caminhos de mim
de ti
de nós
anthero monteiro / Sulcos da Memória e do Esquecimento, Corpos Editora, 2013
NOTAS PARA UM EPITÁFIO
(à maneira de edgar lee masters)
nasci decerto do ventre de um incunábulo
ou do ovo de um livro de asas abertas
como qualquer pássaro sedento de horizontes
os meus livros que fariam uma torre de babel
vazando as nuvens acotovelavam-se lá em casa
por um lugar nas estantes empurravam-se
encavalitavam-se uns sobre os outros
das prateleiras por cima da janela que dá para a rua
debruçavam-se as mais volumosas lombadas
sobre o sítio onde lia ou desenhava
os sulcos dos meus versos
sentado nos autocarros nos comboios
nas dunas nos rochedos ou à sombra das tílias
foi sempre um livro a minha irrevogável testemunha
escrevi livros publiquei livros fundei bibliotecas
vivi entre estantes dois terços da existência
li poemas e histórias para centenas e centenas
a vida foi um espesso tomo dedicado
à leitura à poesia à escrita à bibliofilia
naquela noite sentado no lugar dos meus labores
prosseguia eu a leitura do livro negro do padre dinis
e ali pela página duzentos e trinta e cinco
ouvi alguns ligeiros estalidos que se repetiram
era talvez a traça algum bibliófago a tosar
papel tenrinho mas não fiz caso pois essa
é uma entidade tão invisível quanto deus
alguns parágrafos adiante aquela frase do duque
de cliton: "quando o pressentimento da morte
nos fala muitas vezes não devemos desprezá-lo"
mal virei a página um estrondo de derrocada
sobre a mesa de leitura e o seu ocupante
ainda tentei apanhar a vida mas ela escoou-se
de repente como um peixe dos limos
que nos resvala das mãos
In Memoriam
Maria Virgínia Monteiro (1931 - 2022) / Anthero Monteiro (1946 - 2022)
fotografias:JMTS
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