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BERLIM / Tiago Novaes / Walter Ruttmann
Sou um homem metódico e acolhi a maturidade com alegria.Cresci numa cidade em ruínas. Todos que cresceram em certa época por aqui foram testemunhas do renascimento de uma cidade. A reconstrução de Berlim. A chegada dos estrangeiros. Enxergamos o presente como uma coisa frágil, porque todas as crianças brincavam nas ruínas e nos baldios, todas já colheram os gerânios que brotavam das rachaduras e fizeram bangue-bangue entre os muros incompletos. Nos anos sessenta, o mundo estava todo voltado para Berlim. E nascíamos compreendendo como era uma parede por dentro, e que pode chover no interior de uma catedral. Os parques desta cidade não são planos porque foram construídos sobre monturos de ruínas, você sabia? A grama cresceu sobre os destroços que a administração amontoou em certas quadras da cidade. Nossa mãe nos levava para passear, e encontrávamos pedaços de papel na grama. Farpas de madeira nobre. Cacos de espelho ou bijuterias. E muitas pedras. Pedras de todos os tamanhos, pedaços de concreto, alguns que pareciam pó de marfim, gesso, um ou outro metal retorcido. - pp. 9-10- capítulo "Emin"
Os olhos de uma cega só enxergam o que não se mostra:o contrapeso da alegria, o blecaute ao meio-dia, os fusíveis queimados do teatro enquanto os atores ensaiam e fumam, confusos entre a leitura e a função. Sou cega mas tenho olhos. Sim, fiquei. Com treze anos. Na última noite em que vi, chovia. A chuva foi minha imagem mais íntima, queimada na retina. Saí de casa porque já não havia casa. Estou em Berlim há dois anos e nunca vi a torre da televisão comunista ou as barbas dos turcos em Kreuzberg. Tenho para mim um mapa das ruas, o meu desenho delas é o som que me fazem. Quando os faróis estão abertos em Glasgower Strasse, a pista reta rasga como uma lâmina, acuando os homens. Já sei como soa um arranha-céus, mas a rua é de pequenos edifícios, como o do Fight Club. As mães cochicham em iídiche com os filhos. É outra coisa em Brusseler Strasse ou em Ostender Strasse, quando se escuta os passos e os pesos, as conversas pairam na calçada, as janelas abrem e fecham e se pode ouvir o regar das plantas nas sacadas. Esta é a minha cidade. O mapa não dá referências e assim fica fácil, porque aqui dá para morar numa casa que não existe. Aqui eu trago todas as casas desfeitas e fica cômodo. Perder tudo é uma regra. Nenhuma humilhação, nenhuma mesmo. - pp. 40-41- capítulo "Mercedes"
Tudo era novo e quando tudo é novo, ficamos naquela atenção flutuante da qual os psicanalistas tanto falam, uma disposição concentrada onde tudo nos chama e quase nada fica registrado. Descemos em Haselhorst e, no ponto de ônibus em Spandau, a Mio abraçou o corpo, alongou-se para o lado, distraída, e fez um comentário. Já era noite e ela disse "veja quantos coelhos". Voltei-me para a grama verde, imóvel, um tapete plácido. Já estava escuro. Você não vê?, ela repetiu. Eu não via nada. Deu dois segundos, ela saiu correndo pelo gramado, e foi quando aconteceu: passei a ver os coelhos, uma multidão deles, saltitando, afastando-se das pernas leves de Mio, mergulhando em buraquinhos no chão, alongando as patas divertidas em diagonal, como eu de fato imaginava que faziam os coelhos, porque de coelhos eu não sabia nada, jamais havia dedicado um pensamento muito sério, ou muito longo, ou testemunhara um coelho fugir de um predador.Na televisão, quem sabe, e quem sabe onde guardamos esssas memórias, esses registros mínimos. - pp. 138-139 - capítulo "Agave"
walter ruttman
berlin, die symphonie der grosstadt, 1927
Tiago Novaes, Dionísio em Berlim, Editora Quelônio, São Paulo, 2019
Walter Ruttmann, Berlin, die Symphonie der Grosstadt, 1927