das palavras dos outros
josé manuel morão / in Terra do Esquecimento
poemas da aldeia do Peso- Covilhã, Sítio do Livro, 2019
O CUIDADO DOS CAMPOS
Dantes os campos brilhavam de labor.
Eram as águas meditadas, as presas
de verdes líquenes, os regos orientados.
Entrávamos, entendíamos a ordem,
jamais morríamos. A morte
era só uma imperceptível mudança de sorte.
ANOS DE TREZENTOS
Neve na serra, alta. Longe.
As gentes sofrem os padecimentos
e refugiam-se nesta sua primeira igreja,
antes de tombarem no leito da doença mortal.
Vou pelos casebres de xisto,
de maceradas portas onde vai marcada a cruz.
É noite. Ardem as pequenas lucernas de azeite
lá dentro. Passo atrás da pequena abside.
Eram os anos de trezentos. Ninguém
sabia deste recôndito do reino.
Os homens dos pinheirais ansiaram um lugar
onde venerar. - O mais era cultivar e morrer.
A VISÃO DO MORTO
Criança, entrei no velório.
O caixão, o morto grande e encasacado,
o copo de água com o raminho de oliveira
com o qual os que chegavam aspergiam o morto.
As gentes à volta, mau grado os brados, morriam.
E o morto vivia, iluminado pela luz que, da porta,
varria o centro do quarto, até ao roxo do pano, ao crucifixo
na mesa ornada, aos castiçais dos lados.
Parado aos pés do morto. O corpo grande. A cara grande,
aflita. Nos olhos semicerrados, brilhava-lhe segura a pupila,
alumiava ainda, pequena, lenta, alumiava.
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