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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








sexta-feira, 13 de julho de 2018

sublinhados & notas




Traçar um Nome no Coração do Branco | Rosa Alice Branco | Assírio & Alvim | 2018


DO POEMA ENQUANTO CLIPE

 
Apresentar um livro de poesia será sobretudo celebração da própria poesia, e nela da vida, na exacta medida em que os poemas nos acrescentem, como é notoriamente o caso, sentido e sentidos à nossa tão gloriosa como precária existência: Rosa Alice Branco, Traçar um Nome no Coração do Branco (Assírio & Alvim, 2018). E tal acontece, antes de mais, porque se trata de um ciclo poético extremamente desafiante em termos de leitura, ao baralhar expectativas e questionar, na prática, os limites do que podemos designar, simplificando, como o universo da poesia.
Há uma primeira tentação: ficarmo-nos pela leitura, pela simples leitura audível dos poemas, e eis aqui um primeiro impacto da obra, a par do livro-objecto que não nos deixa também indiferentes, assim demasiado rosa avermelhado, com um título a branco que nos fala, precisamente, do branco. Enleia-nos uma musicalidade muito natural, um falar que diríamos chão, mas cheio de pequenas e preciosas surpresas. Um discurso que cria uma insidiosa envolvência no leitor, uma espécie de respiração fácil; há uma distensão nesta poesia, preguiça sensual, languidez. Sinto o livro bastante “cool”, na sua musicalidade fluente, mesmo que o clima não deixe de ser frequentemente lírico e (não tenhamos medo da palavra) apaixonado. Ainda assim “cool”, predominando uma espécie de contínuo “legato” que, aliás, a regularidade da própria mancha gráfica confirma.

 
O que imediatamente toca o leitor neste livro é a conhecida coexistência na poesia de Rosa Alice Branco de um vector que ligaríamos ao pensamento racional, técnico, científico ou filosófico e de um discurso propriamente lírico (basta recordar títulos da autora como Monadologia Breve ou A Mão Feliz- Poemas D(e)ícticos). Poemas como os que aqui encontramos accionam múltiplos saberes e há, no caso particular deste ciclo, a proposta de uma espécie de catálogo de modalidades e objectos de design (num sentido amplo do termo), que vai das peças de autor aos objectos mais comuns, passando também por termos científicos ou referência a marcas comerciais e a um conjunto de termos que associamos ao mundo moderno e globalizado. No entanto, tais referências entram numa deriva poética que dá a um universo que seríamos tentados a considerar tecnocrático novas e inesperadas ressonâncias. Mas não se trata, naturalmente, de uma exibição gratuita de extravagância nem do gosto da provocação pela provocação, embora haja aqui um muito evidente sentido lúdico. Somos, antes, conduzidos a uma travessia de saberes que pressupõe um alargamento do campo de experiência da vida que a melhor poesia sempre nos propõe. Como diz Barthes em Leçon, trata-se apenas de seguir o exemplo da pedra de Bolonha:

            «A literatura [e por maioria de razão a poesia] ocupa-se de muitos saberes (…) [mas] desvaira os saberes, não estabelece ou fetichiza nenhum deles; concede-lhes um lugar dissimulado e essa dissimulação é preciosa. (…) permite designar saberes possíveis- insuspeitos, inacabados: a literatura trabalha nos insterstícios da ciência: está sempre para além ou aquém dela, tal como a pedra de Bolonha que irradia à noite o brilho que acumulou durante o dia e com esse luar ténue ilumina o novo dia que desperta. A ciência é grosseira, a vida é subtil, e a literatura interessa-nos na medida em que tende a corrigir essa distância, essa diferença.» (Lição, ed. 70, 1979, trad. Ana Malfada Leite)



São estes saberes que caracterizam o livro, assim subtis e intersticiais, nessa linha flutuante que demarca e confunde os discursos.
Há aqui como que a proposta de um novo “Museu Imaginário”, com novas formas de arte ou de realização humana, com novos objectos significativos capazes de neles concentrar atenção e sentidos, ou até um novo “Gabinete de Curiosidades” à maneira renascentista, em que o exotismo advém, desta vez, não tanto dos objectos em si, mas do modo como olhamos para eles; ou que resulta, então, do simples facto de para eles olharmos e os valorizarmos para lá da sua irreflectida utilização quotidiana. Encontramos até uma sistematização de capítulos/poemas numerados e devidamente intitulados e subintitulados, como se os parêntesis viessem esclarecer e especificar. Mas o movimento do livro vai no sentido de exactamente questionar esta catalogação, com os jogos de palavras e o discurso metafórico a caminho de um saber outro, que é também, para voltar aos jogos de conceitos barthesianos, uma questão de sabor. Este livro, com o seu título tão deliberadamente poético, não corre, porém, o risco (ironicamente percepcionado por vários poetas) de ir parar a uma estante errada, como (são meros exemplos) Monadologia Breve da própria Rosa Alice Branco ou O Problema da Habitação de Ruy Belo ou ainda Introdução à Filosofia de Fernando Echevarría. Este livro interessa-nos, entre outras muitíssimas razões, porque é capaz de assumir e resgatar para a poesia e para a inteligência e sensibilidade poéticas um universo linguístico marcado, em muitos casos, pelo desgaste e alienação do seu uso técnico, político e social- e nessa medida se cumpre, de alguma forma, aquela missão da poesia de que nos fala Mallarmé, a de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”.
Uma outra forma de tentarmos uma aproximação à falsa simplicidade desta obra será a de percebermos como precisamente o seu título une com a eficácia depurada de um clipe (já lá iremos) pulsões, insistências, predilecções deste e de outros ciclos poéticos da autora.
“Traçar um nome no coração do branco” é uma expressão deliberadamente elíptica: como se deve ler? Eis que eu traço?; é preciso traçar?; ou trata-se de apontar um gesto, ou seja, é um gesto que chama a atenção para um gesto, para a força e as consequências de um gesto, para a necessidade de inscrever de forma rigorosa uma marca no mundo (o que é talvez a grande função da escrita e do design)? De qualquer forma, sublinha-se o aspecto performativo que, se é imanente, de alguma forma, ao discurso poético enquanto tal, o é muito em particular na poesia de Rosa Alice Branco; o poema abre em cada momento uma situação nova de comunicação, encena a sua própria deixis, um aqui, um agora, um eu, um tu, um ele, as possibilidades, as consequências de cada gesto. Importa a tensão da vida, o corpo lançado, o lugar instável, o momento de todos os possíveis, e não tanto a perfeição, o estado de estátua. É disto, muito mais do que disto, que nos fala o poema “A Soleira da Porta: Glad for the Privacy” (p.63), ao mesmo tempo que nos traz o motivo do encontro, da paixão, muitas vezes erotizada, de um eu e de um tu, sucessivamente retomados neste livro. É este, aliás, uma espécie de “fil rouge” que liga os poemas numa narrativa subliminar que o leitor como que pressente e surpreende, uma narrativa de todas as narrativas, sempre apta a se reinventar. Acrescente-se que o poema parte de um trabalho de Julião Sarmento e que o processo ecfrástico assume, na pulsão cinematográfica que marca frequentemente a poesia da autora, uma espécie de movimento de câmara lenta que permite captar o emergir dos gestos, na sua pulsão vital.
Se no título deste livro a poesia nos aparece como consubstancial a um gesto genesíaco, a palavra, o nome, não são apenas conceitos, mas seres no mundo, questão de sobrevivência, respiração, um pouco à maneira de Ramos Rosa. É a própria autora que, num outro lugar, nos fala de um “coração ortográfico”. Em “Design Tipográfico” (p. 24), “As palavras são incorruptíveis e por isso belas. / Movem-se à velocidade da luz se a velocidade fosse infinita / e a perspectiva multiplica-se como se fosse vista pela mulher / amada.” Ou, como se diz em “Clipe para Todos” (p.9), a abrir o livro, “As palavras entravam nos olhos e seguiam os caminhos / do corpo, apertavam às vezes um lugar que dizem ser / o coração”.
Ora, sendo neste título “coração” uma palavra chave, na sua coloração sentimental e lírica, no tónus afectivo, funde-se também com o palpitar orgânico, a vibração animal do corpo, porque nesta poética o branco afasta-se de qualquer angelismo neutro, perfeito e sublime, para se deixar euforicamente contaminar por essa pulsação apaixonada e física- não é tanto o branco no branco de, por exemplo, Eugénio de Andrade, a pura pureza, mas o branco síntese de todas as cores do espectro no seu movimento infinito, o branco enquanto disponibilidade para todos os possíveis.
Aberto o livro que o título tão bem sintetiza enquanto vivo sinal, qualquer poema é uma boa introdução e conclusão do livro, o que não é difícil que aconteça, porque se trata de uma obra com evidente unidade. Façamos a experiência- vá, por favor, à página 61: “Design no  Feminino”. Temos a assunção de uma condição feminina no sentido mais visceral e íntimo da expressão; a vida enquanto deambulação, percurso, estar no mundo em movimento e em consonância com a sua própria dinâmica; o amor preciso pelas coisas, feito dos detalhes que nos circundam, existências mínimas, triviais, mas cheias de sentido; a fixação no aqui e agora de cada fragmento do mundo (a sua condição deítica, diríamos), mas que é um apuro do próprio mundo; e aqui, desde logo, a questão do design, que é transversal a todo o livro, o design enquanto modo rigoroso de ocupar os lugares (sem excrescência ou restos que sobrem do justo, do amigável, do intenso); também o humor, uma espécie de loucura, um tom lúdico; o sangue, o coração, os lábios, o chocolate (o apuro das sensações, a culminação do sentir); a junção improvável de mundos e campos semânticos distintos (a linguagem técnica, os termos estrangeiros, as referências ao concreto material e social, mas um discurso também lírico e metafórico, sendo que a linguagem poética, pode ser, precisamente, assumida pelas referências mais concretas e consideradas prosaicas, num alargamento e questionação do próprio campo do poético); enfim, o elogio da imperfeição, de uma espécie de plenitude e eternidade que cabe às pequenas coisas que não cuidam da sua precariedade. Vá, pois, por favor, à página 61 e confira.
A assinalada disponibilidade para todos os possíveis permite perceber de que modo os caminhos infinitamente percorridos, os lugares dilectos do sujeito, os lugares do coração, nos surgem nesta poesia, e tal não se desliga de uma abordagem poética da percepção e da própria arte. A questão é, no fundo, também a do design, a da arquitectura: como habitar o mundo (ou, se necessário, como o tornar habitável), aceder à distância certa e feliz relativamente às coisas, conjugar intimidade e cosmos. “Design de Exteriores” (p. 18) põe precisamente em jogo o modo de acomodar o mundo, torná-lo amigável, porque “O frio nem sempre é dele”. Trata-se aqui de operar transferências, urdir uma infância imune ao frio, uma nova arte de viver que, mais do que talvez nos velhos gregos, se inspira no design; ou trata-se, como em “Sound Design” (p.20), de soar em consonância com o mundo, estar atento a sintonias subtis.
Em “Casa de Chá da Boa Nova” (p.15) ou em “A Janela de Mar” (p.47), poemas que partem de um conhecido projecto de Siza Vieira, é colocada a questão de um habitar do mundo em que o exterior (e nele o mar, que é um elemento forte desta poética) e o interior se ajustam, o eu e o tu se cruzam, e a arquitectura, a forma justa, é o traço de união de todos esses planos: “Luz assinada por mão / de mestre (…)”, construção do mais íntimo no cosmos. Esta poesia instala-se, assim, em múltiplas cidades subtis, para lembrar Calvino, o que se traduz em fórmulas sedutoras como “(…) e nós tão próximos sem no entanto” ou “(…) a proximidade insustentável e no entanto” (p.47). Arte de viver, modos de sustentar o excesso de tudo. Há uma apropriação da visão pelo corpo, de modo a compreender o mundo, não só nessa maneira intelectualizada em que também usamos o verbo “ver” (estão a ver?), evitando a desfocagem, mas também através de uma permeabilidade generalizada entre planos e lugares (“(…) bendigo as juntas imperfeitas por onde / o vento vem inebriar o rosto”, p.15), e que é, na sua dinâmica, eminentemente cinematográfica. Estamos longe da melancolia fotográfica, desse modo de vermos as ausências. Bem pelo contrário, desta diversa concepção do mundo nos fala um poema como “Anel de Moebius à Lareira” (p.21), invocando o magnífico objecto matemático que, na sua rigorosa impossibilidade, talvez seja o mais fiel modelo das nossas vidas e lugares: espaço sem princípio nem fim, sem fora ou dentro, acessível apenas para quem saiba orientar-se na intensa “topologia dos beijos”.
Assim, ao motivo do limiar que a já referida “soleira da porta” concretiza, devemos acrescentar o da janela, que arrasta consigo o da “moldura” e o da percepção estética. Em “Moliceiro deslizando ao longo das Salinas” (p.41), a janela é o caixilho, o ponto de vista, a apropriação pessoal da paisagem, mas também um lugar de fusão com o mundo: deixá-lo entrar na sua iridiscência e balanço. Por sua vez, a pintura é a janela, mas não necessariamente a renascentista: quadro e natureza são reversíveis e, nessa medida, “(…)a botânica é / uma arte plástica onde a seiva flui e conta os segredos / que se alongam até à mais insignificante folha (…)”, porque “(…) na arte moderna nem sempre se / distinguem as espécies e o anzol” (“A Moldura é um Artifício?”, p.48). Ainda pelo amor (ou paixão, ou impulso erótico) se reconstrói e ecoa o mundo como nova linguagem que baralha coordenadas, cria novas leis da física, numa “(…) língua que nos guia / pela magnetosfera (…)” (“A Bússola que nos perde”, p.13).
Na euforia da ocupação dos espaços, é este um livro solar e feliz, mas também naquele sentido em que lhe pertencem, confundindo-as com a matéria luminosa, todas as sombras. Não deixa de estar atento a desamparos, desigualdades, não evita olhares críticos e denúncias- mas fá-lo no mesmo movimento fascinado com que vê e sente o mundo. Eis a noite, a sua opacidade, um objecto trivial, um xaile que tudo dirá do desaconchego, da dor que torna um corpo impenetrável, sem lugar no mundo, sem encontro. Vêmo-los e sentimo-los em “Um Xaile Preto em cada Fado” (p.12).
Diga-se de passagem que é este um poema que, com referências ao que podemos considerar um património ao mesmo tempo material e imaterial, nos sugere um outro motivo que atravessa o livro: o mito. Não se trata aqui de metafísica, misticismo ou ruínas cheias de significado. O tempo não nos surge como transcendência, acúmulo ou depósito, mas enquanto respiração que em cada momento o reinventa. É assim, por exemplo, em “Logótipo de Lisboa” (p.51) ou em “Um Vintage na Boca do Porto” (p.29), em que o correr do Douro não é só o correr do rio, porque o tempo tem corpo e o espaço é constituído por filamentos do tempo. É esta a realidade do mito que interessa ao sujeito poético, enquanto depurada forma de design.
Mas de disforia se falava. Das sombras que a luz segrega fazem parte dias em que “(…) o sentido é um pântano pestilento / de dor crua (…)” (p.12) ou em que o “breve hiato” da vida promove desencontros, quando “(…) o homem que eu amo é finalmente quem não amo” (p.14). Como sustentar o excesso, a alteridade, a loucura amante do mundo, se cada lugar pode ser desencontro (”Cada lugar tem a sua deixa”)? A disforia está temperada de ironia em poemas como “Design de Produto” (p.31), onde entrevemos, na ausência do “tu”, um mundo de clones e gaivotas de bico esterilizado. Poderíamos prolongar os exemplos de críticas e denúncias: a tecnologia imune ao sopro poético, em dias de só prosa e exercício castrador do poder (“Telecomando que nos Comanda”, p.33); a recuperação comercial do mito (“T-Nager e Outsourcing”, p. 60); a alienação e destruição da natureza (“A Moda das Peles”, p.58).
Mas a lugares difíceis e impessoais, em que “Cada relógio tem direito à sua paragem / cardíaca” (“O Relógio da Estação”, p.50), sobrepõem-se os lugares dilectos, como a ria de Aveiro ou a Foz do Douro, resultado de um apuro existencial, na coreografia das suas vidas e dos seus cenários, sugerindo uma espécie de escrita vital que implica aprendizagem e imersão. Como se houvesse uma sabedoria do tempo, enquanto forma superior de uma espécie de design que torna alguns sítios habitáveis e respiráveis. É também o caso daquilo que podemos considerar uma espécie de “cena primitiva” deste livro, no sentido freudiano do termo: uma esplanada sobre o mar, habitada pelo casal amante (“Torrada ao Sol em cadeiras Ondulantes”, p.22).
Traçar um Nome no Coração do Branco é, como vimos sugerindo, uma colecção de objectos significativos, materialidades que o não são apenas, pelo valor dado ao mínimo, às pequenas coisas que são também seres dotados de afectividade e de repercussão às vezes íntima, às vezes cósmica. Na poesia portuguesa, ao Chevrolet na estrada de Sintra de Álvaro de Campos, teremos de juntar agora o Porche Carrera, em que, sem luar, sonho ou metafísica, a comunhão com o mundo se traduz de forma literal, na velocidade que faz “(…) bater o bater do coração” (p.16) . E há o “pick-up” da Philips, que transporta consigo o lugar mágico da infância recriada pela música e pelo amor, a velha Remington que imita o ritmo cardíaco do mundo e sempre etc., etc. E há cadeiras e bancos, vários e significativos.
António Pinto Ribeiro, no seu ensaio “por exemplo a cadeira” (in Questões Permanentes, Cotovia, 2011), a propósito da dança e das artes performativas, assinala como o aparecimento deste objecto nos palcos corresponde a uma descida do corpo para si, a uma rematerialização que o traz para os ritos sociais e culturais. Nesta poesia há também como que uma descida à terra dos seres angelicais. A Wiggle Side Chair (a cadeira de cartão de Frank Gehry, p.27) surge-nos, assim, como se fosse um elemento mágico de catalização, porque o bom design sabe ocupar o espaço e desencadeá-lo, enquanto o banco Move Stool de Per Oie (p.45) se torna uma espécie de ícone capaz de sugerir a postura do poeta, tal como neste livro se insinua: ele está ao trabalho num banco que balança com o corpo, conjugando imobilidade (contemplação) e movimento (acção). Há um “escrever sentado de pé”, em contraponto com um universo estático a que é preciso “dar corda”, oferecendo-se o trabalho da escrita à oscilação do mundo e à pulsação erótica.
O conceito de design é extensível ao culminar das sensações que refinam a experiência do mundo e levam “as emoções ao rubro”, como em “Design é Chocolate” (p. 37) ou nas referências ao champanhe, ao vinho do Porto, ao café. Um poema como “Design de Comunicaçã0” (p.25) deixa cruzar muitas das linhas com que se tecem os poemas do livro, ao conceber um gesto humano (um beijo) como uma forma superior de design, na busca do apuro do gesto e no alcance da sua relação com o mundo e o outro (e com a ironia suplementar da utilização do termo “protótipo”). Quando os nomes se tornaram já a carne da cidade e a beleza uma marca perdurável, ao contrário do sofrimento que se pode desvanecer, e o gesto amante, do eu e do tu, do tu e do eu intermutáveis, se confunde com a apropriação do mundo (caracteristicamente tornado tão concreto, tão moderno, em tablier, limpa pára-brisas e poeira), é só então que a vida subtil (“rosa despojada”) se entrega ao cuidado dos dedos, e ali nasce o imo da cidade, silêncio, sabores e cheiros reencontrados, mar e alegria.
Para que serve e o que é, neste contexto, a poesia? O próprio livro explica: construir casas que possamos habitar, num lugar de subversões e sabidas inconvizinhanças, onde os direitos do autor, na sua dádiva ao mundo, se tornam limitados (“Os Livros, as Folhas, o Coração”, p.11). Ou então, aprendêmo-lo também, a poesia é apenas um clipe. No poema que o celebra (“Clipe para Todos”, p.9), ele une vidas desencontradas, promove nexos que estavam alienados, fala como se não usasse palavras. Há um “milagre do clipe ao final do dia”, mas ele exige não propriamente metafísica, mas um “corte limpo e sem rebarbas”. A poesia é, então, antes de mais, um objecto simples, útil e depurado, como este que temos entre as mãos e que, enfim, temos de fechar, convidando-nos a que olhemos em frente e um pouco à volta.


jmts


da apresentação na livraria Flâneur, Porto, 02/06/2018



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