Apresentar um livro de
poesia será sobretudo celebração da própria poesia, e nela da vida, na exacta
medida em que os poemas nos acrescentem, como é notoriamente o caso, sentido e sentidos à nossa tão gloriosa como precária existência: Rosa Alice
Branco, Traçar um Nome no Coração do
Branco (Assírio & Alvim, 2018). E tal acontece, antes de mais, porque
se trata de um ciclo poético extremamente desafiante em termos de leitura, ao
baralhar expectativas e questionar, na prática, os limites do que podemos
designar, simplificando, como o universo da poesia.
Há uma primeira tentação:
ficarmo-nos pela leitura, pela simples leitura audível dos poemas, e eis aqui
um primeiro impacto da obra, a par do livro-objecto que não nos deixa também indiferentes,
assim demasiado rosa avermelhado, com um título a branco que nos fala,
precisamente, do branco. Enleia-nos uma
musicalidade muito natural, um falar que diríamos chão, mas cheio de pequenas e
preciosas surpresas. Um discurso que cria uma insidiosa envolvência no leitor,
uma espécie de respiração fácil; há uma distensão nesta poesia, preguiça
sensual, languidez. Sinto o livro bastante “cool”, na sua musicalidade fluente,
mesmo que o clima não deixe de ser frequentemente lírico e (não tenhamos medo
da palavra) apaixonado. Ainda assim “cool”, predominando uma espécie de
contínuo “legato” que, aliás, a regularidade da própria mancha gráfica
confirma.
O que imediatamente toca o leitor neste
livro é a conhecida coexistência na poesia de Rosa Alice Branco de um vector
que ligaríamos ao pensamento racional, técnico, científico ou filosófico e de
um discurso propriamente lírico (basta recordar títulos da autora como Monadologia Breve ou A Mão Feliz- Poemas D(e)ícticos). Poemas
como os que aqui encontramos accionam múltiplos saberes e há, no caso
particular deste ciclo, a proposta de uma espécie de catálogo de modalidades e
objectos de design (num sentido amplo
do termo), que vai das peças de autor aos objectos mais comuns, passando também
por termos científicos ou referência a marcas comerciais e a um conjunto de
termos que associamos ao mundo moderno e globalizado. No entanto, tais
referências entram numa deriva poética que dá a um universo que seríamos
tentados a considerar tecnocrático novas e inesperadas ressonâncias. Mas não se
trata, naturalmente, de uma exibição gratuita de extravagância nem do gosto da provocação
pela provocação, embora haja aqui um muito evidente sentido lúdico. Somos,
antes, conduzidos a uma travessia de saberes que pressupõe um alargamento do
campo de experiência da vida que a melhor poesia sempre nos propõe. Como diz
Barthes em Leçon, trata-se apenas de
seguir o exemplo da pedra de Bolonha:
«A
literatura [e por maioria de razão a poesia] ocupa-se de muitos saberes (…)
[mas] desvaira os saberes, não estabelece ou fetichiza nenhum deles;
concede-lhes um lugar dissimulado e essa dissimulação é preciosa. (…) permite
designar saberes possíveis- insuspeitos, inacabados: a literatura trabalha nos
insterstícios da ciência: está sempre para além ou aquém dela, tal como a pedra
de Bolonha que irradia à noite o brilho que acumulou durante o dia e com esse
luar ténue ilumina o novo dia que desperta. A ciência é grosseira, a vida é
subtil, e a literatura interessa-nos na medida em que tende a corrigir essa
distância, essa diferença.» (Lição,
ed. 70, 1979, trad. Ana Malfada Leite)