sublinhados & notas
Passagens | Teolinda Gersão | Sextante Editora | 2014
CIÊNCIA DAS PASSAGENS
Passagens de Teolinda Gersão é um livro que fica comigo. Lembrei-me,
enquanto o lia, de um filme de que gosto muito: As Asas do Desejo (Der Himmel
über Berlin) de Wim Wenders. A mesma multiplicação das vozes e dos pontos
de vista, o deslocar da visão para uma escala englobante mas sensível, sem nada de
abstracto ou totalitário; a compreensão dos pequenos dramas e enredos, o mais
íntimo no seu próprio tom, mas sobre isso um sopro cósmico, um olhar angelical,
sábio e sem preconceitos, envolvido e distanciado.
E
lembrei-me ainda de um outro livro, A
Paixão de Almeida Faria. Guardo-o num recanto da biblioteca onde também
ficará Passagens. Em ambos um tempo curto e simbólico, que se entretece do contraponto, ora agreste ora
harmonioso, de vidas diferentes que se cruzam. Mas tanto o filme de Wenders como o romance de Almeida Faria deixam-nos um sobressalto, uma angústia dispersa que neste romance
desembocam, porém, numa espécie de grande serenidade, que me parece característica
da escrita da autora. Trata-se de uma ciência das passagens, porque "o mundo é uma oscilação perene" (para retomar a epígrafe de Montaigne).
Momentos que mais me tocaram? O arranque do romance, com a sua perspectiva inesperada e a
sábia gestão das informações (um pouco como quando num célebre romance de Agatha
Christie descobrimos que o assassino é o narrador com quem nos habituámos já a
conviver…); a personagem Conceição, que podemos colocar a par de Piedade
(justamente do livro de Almeida Faria) ou da Mulher da Esfrega de Húmus de Raul Brandão; a história (para mim
comovente) de Ana e do pai, na parte 2; mas muito o impacto do conjunto, a
polifonia global.
Sinto o livro como uma espécie de música de câmara, alcançando o
máximo de efeito a partir de pequenos, mas preciosos, recursos. O balanço final é de uma
quase indissociação de pontos de vista e pensamentos (o exemplo máximo surge
quando várias personagens parecem conversar através dos seus monólogos interiores
e correntes de consciência, ou quando reproduzem o discurso de Ana já penetrado
por alguma insanidade). É como se se tratasse de uma voz dentro, mas para lá, de todas as vozes. O virtuosismo do romance está em tornar habitável e como que
natural esta música do mundo inteiro.
jmts.
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