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Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








sábado, 12 de setembro de 2015

sublinhados & notas



Passagens  | Teolinda Gersão | Sextante Editora | 2014


CIÊNCIA DAS PASSAGENS

Passagens de Teolinda Gersão é um livro que fica comigo. Lembrei-me, enquanto o lia, de um filme de que gosto muito: As Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin) de Wim Wenders. A mesma multiplicação das vozes e dos pontos de vista, o deslocar da visão para uma escala englobante mas sensível, sem nada de abstracto ou totalitário; a compreensão dos pequenos dramas e enredos, o mais íntimo no seu próprio tom, mas sobre isso um sopro cósmico, um olhar angelical, sábio e sem preconceitos, envolvido e distanciado. 

E lembrei-me ainda de um outro livro, A Paixão de Almeida Faria. Guardo-o num recanto da biblioteca onde também ficará Passagens. Em ambos um tempo curto e simbólico, que se entretece do contraponto, ora agreste ora harmonioso, de vidas diferentes que se cruzam. Mas tanto o filme de Wenders como o romance de Almeida Faria deixam-nos um sobressalto, uma angústia dispersa que neste romance desembocam, porém, numa espécie de grande serenidade, que me parece característica da escrita da autora. Trata-se de uma ciência das passagens, porque "o mundo é uma oscilação perene" (para retomar a epígrafe de Montaigne).

Momentos que mais me tocaram? O arranque do romance, com a sua perspectiva inesperada e a sábia gestão das informações (um pouco como quando num célebre romance de Agatha Christie descobrimos que o assassino é o narrador com quem nos habituámos já a conviver…); a personagem Conceição, que podemos colocar a par de Piedade (justamente do livro de Almeida Faria) ou da Mulher da Esfrega de Húmus de Raul Brandão; a história (para mim comovente) de Ana e do pai, na parte 2; mas muito o impacto do conjunto, a polifonia global. 




Sinto o livro como uma espécie de música de câmara, alcançando o máximo de efeito a partir de pequenos, mas preciosos, recursos. O balanço final é de uma quase indissociação de pontos de vista e pensamentos (o exemplo máximo surge quando várias personagens parecem conversar através dos seus monólogos interiores e correntes de consciência, ou quando reproduzem o discurso de Ana já penetrado por alguma insanidade). É como se se tratasse de uma voz dentro, mas para lá, de todas as vozes. O virtuosismo do romance está em tornar habitável e como que natural esta música do mundo inteiro. 

 jmts.


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