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de leitura, coisas à margem de livros.
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A ORIENTE DO ORIENTE
Ao ler Os Amantes da Fronteira de Tiago Novaes, pensei muitas vezes nuns versos de Álvaro de Campos, o heterónimo pessoano mais próximo da ideia de viagem enquanto ansiada experiência de plenitude, acompanhada do seu irmão quase gémeo, o sentimento do vazio. Em "Opiário": É antes do ópio que a minh'alma é doente. / Sentir a vida convalesce e estiola / E eu vou buscar ao ópio que consola / Um Oriente ao oriente do Oriente.
Há sempre, portanto, um oriente para cada oriente e a viagem à Tailândia que ocupa o livro de Tiago Novaes pertence a esta genealogia: busca de si e do mundo eternamente insatisfeita, demanda que é também, como em Campos, fuga para a frente e, daí a muito pouco, virá a ressaca da euforia das sensações. Desta vez é a viagem de Y (que foge, aliás, de outros desencontros, na sua obsessão por W), figura exemplar, no seu irradiante anonimato, mas também uma incógnita, para o leitor e para si próprio.
Mas neste relato que retoma relatos anteriores, relativizando os pontos de vista, predomina um tom que não é o da construção e desconstrução modernistas. Em alternativa, somos levados para uma espécie de letargia conformada, como se a virtualização do mundo e o seu continuado simulacro já não permitissem qualquer narrativa legitimadora que possa dar sentido à experiência do caos. Como na epígrafe de Nerval, "les dieux se sont envolés", incluindo os das utopias vanguardistas. Se este livro se faz de uma discreta arquitectura fluida (puro relato de viagem, meditação existencial, diário, sondagem psicológica, narrativa entre o mítico e o histórico, cenas teatrais, algum lirismo, breves sátiras), talvez a melhor imagem que dele nos fica seja a de uma estética pós-modernista (para usar um rótulo fácil) feita de pequenos videoclips. É o que diz Ártemis, a propósito da sua vida: "-Hoje meus dias se parecem com uma sequência aleatória de pequenos vídeos da internet. Até os mais interessantes são aborrecidos." (p.83). A mimese possível do nosso mundo é essa espécie de inevitável caos narrativo, que é, em boa verdade, uma sábia orquestração de materiais heterogéneos.
Os Amantes da Fronteira (além do mais, um objecto bonito e intenso- capa, badanas, papel, colecção) instala-nos, através de uma escrita económica e precisa, e sem aviso prévio, na dinâmica de uma dimensão radical da viagem: procurar no mundo uma identidade desde sempre perdida e em metamorfose, arte de nem sequer habitar a simples estranheza de si, errando entre seres também à deriva e infinitamente híbridos- e neste ponto se convocará a parábola fundadora do peixe-gato. Ou o título: da viagem e do amor, a condenação de viver fronteiras.
Destes percursos sem redenção, mas que mantêm a pulsão do encontro com um estado original e originário, onde o humano e a natureza enfim se encontrassem, nos dá conta uma personagem feminina inesquecível: Ártemis. Como na mitologia antiga, é um ser predador, selvagem e sintonizado com o mistério lunar. Sofre uma via crucis pessoal que assume uma violenta sexualidade, na fronteira entre o humano e o desumano, como se, na anulação de si, se pudesse alcançar uma impossível virgindade. Descrever e tornar verosímil um excesso assim é, sem dúvida, um dos motivos do virtuosismo desta narrativa.
Se não existe, de facto, tradução exacta para nada, como explica Y, este livro tem a rara virtude de nos dar da viagem e do amor a própria vertigem de atravessar territórios, e explica-nos, então, com detalhe e o método possível, a intraduzibilidade essencial da vida. Compromete-se apenas a buscar mais um oriente do oriente ou, como diria Beckett, a falhar o melhor possível.
jmts.
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