teorias portáteis sobre fotografia
A Fotografia de José Melim ou Uma Questão de Tempo
[introdução a José Melim, Instantes, Mindaffair, 2014]
© fotografias de José Melim
O título do texto com que José Melim introduz este excelente conjunto de fotografias salienta o que me parece ser o núcleo essencial do seu trabalho- trata-se, realmente, de uma questão de tempo, até na medida em que está em jogo uma arte de viver, isto é, de passar o nosso tempo no mundo, testemunhando-o e merecendo-o.
Antes de mais, é esta uma prática
fotográfica que se apossa do tempo do espectador, contrariando os hábitos
dominantes de consumo acelerado e frívolo das imagens. Tal só acontece porque o
fotógrafo dá também tempo ao tempo, nessa decisão prolongando os gestos
primordiais da História da Fotografia: o caçador de imagens, colado ao mundo,
está atento aos avisos em redor e assume a postura dos felinos em expectativa
do instante fulminante. Não encontramos aqui os rituais contemporâneos que
alienam o real e, com ele, o precioso atrito da relação do homem com o mundo,
substituindo-os pelo simulacro da acumulação espectacular das imagens. Neste
sentido, o presente livro de fotografias é o resultado de duas operações
exercidas sobre o tempo.
Pelo seu carácter antológico, tem em
si inscrito o apuro que resulta de uma selecção (que se suspeita dramática) de
entre um extenso corpus fotográfico
produzido ao longo de décadas, e que atravessa, inclusivamente, a fronteira
entre o analógico e o digital. Perante o modo de existir destas imagens, temos
a intuição de que o fotógrafo preferiria às suas decisões o escrutínio do tempo,
que é, como diz Marguerite Yourcenar, “esse grande escultor”. ¹
Mas a imersão na temporalidade é,
num outro plano, o diálogo deste livro com a História da Fotografia. Instantes ilustra, com virtuosismo e
sistematicidade, a própria “gramática” do processo fotográfico que é, em si
mesma, um produto histórico, e isto porque estamos perante um observador que,
se merece os acasos da sorte, é sobretudo consciente do que está a fazer, como,
aliás, testemunha o seu texto introdutório. Neste assumir da História da
Fotografia, e porque, como nos diz logo em epígrafe o autor, não há um olhar
que possa ser inocente, denuncia-se um essencial classicismo estético, baseado em valores como o equilíbrio e a
harmonia universais ou, noutra perspectiva, perseguindo a captação de uma
essência, na qual o mundo se viesse aquietar com as suas formidáveis energias.
Prescinde-se, sem remorsos, de muitas das pulsões da fotografia contemporânea:
a neutralidade analítica, o inquérito social ou humanista, a aridez conceptual,
a deriva de um registo confessional.
Arriscaria dizer que estas imagens se
situam, maioritariamente, e com extremo rigor e sensibilidade, no cruzamento de
duas estéticas fotográficas consagradas, que poderíamos, por comodidade,
revelar a partir das lições paradigmáticas de Ansel Adams e Henri
Cartier-Bresson.
Com o primeiro, o fotógrafo
aproxima-se respeitosamente do mundo natural, das montanhas, planícies e
praias; a escala é a da paisagem enquanto santuário em que cabe ao humano a
discreta presença de uma sombra ou a pequena figura que dá a grandeza da
plenitude cósmica. Os pontos de vista mais radicais de alguns “picados” e
“contrapicados” não desmentem este olhar que assume, em tais momentos, a
perspectiva da própria natureza, a partir dos seres mais terrestres ou na visão
englobante dos pássaros. Nesta medida de ampla respiração, as marcas do
desgaste das paisagens, com algum simbolismo de abandono social, erosão dos
materiais ou até sugestão metafísica, surgem, no fundo, como emanação das
forças da natureza, bem presentes na preferência por atmosferas de adversidade
meteorológica. Mundo dentro do mundo, jogo de sucessivas harmonias, é o dos
seres de ínfimo tamanho que também captam a atenção do fotógrafo.
Noutra linha de trabalho (muitas
vezes, mas não só, coincidente com o ambiente urbano), surgem as imagens que se
empenham na busca do “instante decisivo” e que nos fazem recordar Cartier-Bresson. É quando geometria, emoção,
índices sociais, se manifestam numa conjunção capaz de dar sinteticamente corpo
ao espírito dos lugares e da vida. Como se o mundo, sem despojos nem excesso,
nos mostrasse, enfim, o seu verdadeiro rosto. Neste domínio podemos ainda situar
as fotografias que traduzem uma visão de pendor surrealizante, enquanto diligentes
acasos significativos que permitem surpreender a inquieta realidade das coisas.
É agora tempo de calar as palavras e
o pensamento, como sabiamente nos sugere John Ruskin:
Por
cada pessoa que pensa, há centenas que falam. Mas para cada pessoa que sabe
ver, há milhares que pensam. Ver é a conjugação da poesia, da profecia e da
religião.²
Assim acontece com estes Instantes que José Melim nos dá o
privilégio de folhear.
¹ Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse Grande Escultor, Difel, 2006
² Citado em Harry Callahan, “Aperture Masters of
Photography”, Könemann, 1999 (p. 38) – tradução nossa
editor aqui
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