poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








domingo, 27 de abril de 2014

processos sumários

 


PROCESSOS SUMÁRIOS

São processos sumários
que nos levam aos quartos

Há uma espécie de pendor oblíquo
das ruas, sequências de aguaceiros
grandes calmas, o que nos cerca
quando o dia cai inteiro

Esqueceremos o nome mais antigo
apagamo-lo dentro do lugar, regressa
com as luzes, alguém assim o traz
falando de outra coisa

Tudo existe em flagrante
estamos à janela e vemo-nos
chegar, súbitas travagens
ambulâncias, apitos que chamam
do mar muito em criança

Escolheremos o sítio para a mesa
os breves desenhos entre cadeiras
questão de começar os inventários
saber do que insiste nas paredes
se música dos céus, rumor dos
canos, apenas o modo como
o mundo se avaria

Em todo o caso, cuidaremos desse leito
da dobra fria dos lençóis, difícil
a posição das mãos, a travessia
para o demasiado sono


jmts



publicado em Quarto de Hóspedes
volume colectivo, Língua Morta, 2013 (aqui)





Emma McNally
visto aqui







domingo, 13 de abril de 2014

Parábola Óptica
teorias portáteis sobre fotografia

 



A Fotografia de José Melim ou Uma Questão de Tempo

[introdução a  José Melim, Instantes, Mindaffair, 2014]


© fotografias de José Melim



 O título do texto com que José Melim introduz este excelente conjunto de fotografias salienta o que me parece ser o núcleo essencial do seu trabalho- trata-se, realmente, de uma questão de tempo, até na medida em que está em jogo uma arte de viver, isto é, de passar o nosso tempo no mundo, testemunhando-o e merecendo-o.

Antes de mais, é esta uma prática fotográfica que se apossa do tempo do espectador, contrariando os hábitos dominantes de consumo acelerado e frívolo das imagens. Tal só acontece porque o fotógrafo dá também tempo ao tempo, nessa decisão prolongando os gestos primordiais da História da Fotografia: o caçador de imagens, colado ao mundo, está atento aos avisos em redor e assume a postura dos felinos em expectativa do instante fulminante. Não encontramos aqui os rituais contemporâneos que alienam o real e, com ele, o precioso atrito da relação do homem com o mundo, substituindo-os pelo simulacro da acumulação espectacular das imagens. Neste sentido, o presente livro de fotografias é o resultado de duas operações exercidas sobre o tempo.

Pelo seu carácter antológico, tem em si inscrito o apuro que resulta de uma selecção (que se suspeita dramática) de entre um extenso corpus fotográfico produzido ao longo de décadas, e que atravessa, inclusivamente, a fronteira entre o analógico e o digital. Perante o modo de existir destas imagens, temos a intuição de que o fotógrafo preferiria às suas decisões o escrutínio do tempo, que é, como diz Marguerite Yourcenar, “esse grande escultor”. ¹

Mas a imersão na temporalidade é, num outro plano, o diálogo deste livro com a História da Fotografia. Instantes ilustra, com virtuosismo e sistematicidade, a própria “gramática” do processo fotográfico que é, em si mesma, um produto histórico, e isto porque estamos perante um observador que, se merece os acasos da sorte, é sobretudo consciente do que está a fazer, como, aliás, testemunha o seu texto introdutório. Neste assumir da História da Fotografia, e porque, como nos diz logo em epígrafe o autor, não há um olhar que possa ser inocente, denuncia-se um essencial classicismo estético, baseado em valores como o equilíbrio e a harmonia universais ou, noutra perspectiva, perseguindo a captação de uma essência, na qual o mundo se viesse aquietar com as suas formidáveis energias. Prescinde-se, sem remorsos, de muitas das pulsões da fotografia contemporânea: a neutralidade analítica, o inquérito social ou humanista, a aridez conceptual, a deriva de um registo confessional.



Arriscaria dizer que estas imagens se situam, maioritariamente, e com extremo rigor e sensibilidade, no cruzamento de duas estéticas fotográficas consagradas, que poderíamos, por comodidade, revelar a partir das lições paradigmáticas de Ansel Adams e Henri Cartier-Bresson.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

processos sumários

 

DISCRETA NATAÇÃO

Tudo sempre coincidiu
para lá de toda a coincidência

Dizias, eis as lágrimas
e havia chuva ou uma faca de
luz dentro dos olhos

Ficavas calado no jardim
para que usassem pássaros
o teu silêncio
Afinavam pela rouquidão terrestre
quando as folhas imitavam o ar
desenhando o vento inteiro

Entretanto, elaboravam as nuvens
castelos de que fugiam, esse modo
de apenas desaparecerem no mar

A mesma água oferecia o brilho dos peixes
e a discreta natação dos afogados


jmts



publicado em Cintilações da Sombra 2
antologia poética, Labirinto, 2014



Emma McNally
visto aqui