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Casa e Jardim de SERRALVES, PORTO / Maria Velho da Costa
A estação está no seu brumoso começo.O ar tem gotículas de água da noite que se acumulam em bagas irisadas no musgo e na relva. Miss Laura pára ao embate incandescente da multiplicidade de sons, odores, manchas de cor. Vai visitar os seres e sons que brotam cada manhã nos jardins e orlas do bosque, aves e girinos,as lâminas verdes dos narcisos, das túlipas, dos lírios e peónias que despontam dos bolbos por debaixo das japoneiras, com os pés cobertos de pétalas branco e rosa. As roseiras sangram hastes novas para o lado do ar e brotam folhas cor de água nas árvores caducas. Não faz vento e uma humidade fresca arrepia a pele ainda morna de Miss Laura que corre pelas áleas de gravilha com o seu grande chapéu de abas mortas na mão, as fitas a esvoaçar. Sob a abóbada dos altos olmos trançados pára e olha a casa que brilha lá no alto como um claro navio suspenso na linha de mar. O mundo desmorona-se para lá dela, lá fora na cidade fermentam detritos, óleos, corpos, o rio opaco galga armazéns e escadas lúgubres, ruge na foz e encapela-se na base das pontes, mas para cá da casa, da muralha amena e rósea que a casa faz, com as suas altas janelas incendiadas a prata, o mundo pára,esvai-se na fantasia de Miss Laura. Semicerram-se os olhos e a casa é uma grande nave mestra que paira na unção da luz branca cortada pelo voo dos melros e das claras pombas. Uma gaivota grasna tresmalhada até ali e vem outra que deriva com ela até à maresia do bosque, para lá dos últimos socalcos dos grandes canteiros e lagos bordejados de feteiras que descem da casa. "É aqui o lugar de onde não sairei mais, nem morta", pensa Miss Laura no seu arrebatamento.
fotografias de arquivo. fundação de serralves
Maria Velho da Costa, "A Ponte de Serralves" in O Amante do Cravo, Edições Asa, 2002