robin robertson / in Lacre, Língua Morta, 2017
tradução de Vasco Gato
OUROPEL
Sintoniza a frequência do bosque e ouvirás
o veado a respirar; um músculo a retesar-se; o suspiro
de uma arganaz debaixo de uma coruja. Agora
escuta-te a ti mesmo - essa fricção - o investir e o arrastar,
a dupla pulsação, o tambor. Consegues ouvi-lo, nitidamente.
Consegues ouvir o som do teu corpo, a ir-se abaixo.
Se estiveres muito calado, talvez apanhes a derrota: ou antes
o magro ruído que a derrota produz - a perdição.
Se estiveres completamente calado.
E porém não consegues ouvir nada
senão o som do nada: essa voz
e o seu malbaratar-se, o ouropel da alma. Escuta... Escuta...
HIPOTERMIA
A chuva, disseste, é o silêncio com o volume levantado.
Está a chover há dias.
Mesmo quando pára
subsiste ainda o som
da água da chuva, tentando
encontrar a custo uma maneira de penetrar no solo.
Estamos deitados num abraço soturno:
duas metades a tentarem completar-se, empenhadas
nesta interrupção da estática,
do ruído branco
que foi a chuva a cair
o dia inteiro e toda a noite recoberta.
O silêncio é a chuva com o som baixinho,
e espio agora sem entraves
algo que ficou lá fora no estendal:
uma vida, para ali emaranhada -
ensopada, encolhida,
irreconhecivelmente minha.
INTERFERÊNCIAS
A tempestade desfralda os seus lençóis
contra a janela que escurece:
o vidro encolhe-se sob o granizo lançado.
Transtornado, o televisor perde o tino,
transmuda-se em preto e branco
e cala-se ao mesmo tempo que as linhas telefónicas.
Os postais dela estremecem na prateleira, tombam;
as luzes de Calais vão fritando uma por uma.
Ele não tem como lhe dizer
que os gansos regressam a nado ao crepúsculo,
que o farol passeia o seu feixe
sobre as trincheiras do mar.
Não tem como lhe dizer que a noite vasta
balouça como uma porta sem ela,
que ele é a fechadura
e ela a chave.