|Caderno dos Lugares|
paris | 2017
jmts
poesia . fotografia . & etc.
Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
das palavras dos outros
josé pascoal / Sob Este Título, Editorial Minerva, 2017
IMAGEM E SEMELHANÇA
Não sou adepto de peregrinações.
Basta-me um caminho na erva.
Certas ausências em parte incerta.
Não tenho alma de vagabundo.
Sei apenas de momentos memoráveis:
Uma nuvem no céu, uma sombra no poço.
Os meus passos não vão dar a parte nenhuma.
Não tenho encontros. Não me arrisco.
Não faço nada que me obrigue a ir e vir.
Os meus desígnios são insondáveis.
É a minha única parecença com Deus.
VISITA DOMICILIÁRIA
Não reparem.
A casa foi desarrumada pelo vento.
Os bichos não têm de que comer.
O sol já brilhou nos ladrilhos da cozinha.
Não façam caso
Do pó de estricnina
Que cobre os retratos de família
E os recados deixados ao pé do telefone.
Esqueçam
As manchas de humidade no tecto,
Os sapatos gastos à beira da cama,
O silêncio ameaçador do fogão a gás.
Não reparem na minha pobre nudez.
A FELICIDADE É UM NOME
Devo ter sido concebido
No dia de Fiéis Defuntos.
Nasci numa aldeia à beira-mar.
As falésias elevam-se a 53 m.
A praia é um poço de caranguejos
E cargueiros naufragados.
Havia uma anciã chamada Felicidade.
Apareceu enforcada numa figueira.
Ninguém sabe quais serão as últimas palavras.
fotografias de André Kertész
vistas aqui
Basta-me um caminho na erva.
Certas ausências em parte incerta.
Não tenho alma de vagabundo.
Sei apenas de momentos memoráveis:
Uma nuvem no céu, uma sombra no poço.
Os meus passos não vão dar a parte nenhuma.
Não tenho encontros. Não me arrisco.
Não faço nada que me obrigue a ir e vir.
Os meus desígnios são insondáveis.
É a minha única parecença com Deus.
VISITA DOMICILIÁRIA
Não reparem.
A casa foi desarrumada pelo vento.
Os bichos não têm de que comer.
O sol já brilhou nos ladrilhos da cozinha.
Não façam caso
Do pó de estricnina
Que cobre os retratos de família
E os recados deixados ao pé do telefone.
Esqueçam
As manchas de humidade no tecto,
Os sapatos gastos à beira da cama,
O silêncio ameaçador do fogão a gás.
Não reparem na minha pobre nudez.
A FELICIDADE É UM NOME
Devo ter sido concebido
No dia de Fiéis Defuntos.
Nasci numa aldeia à beira-mar.
As falésias elevam-se a 53 m.
A praia é um poço de caranguejos
E cargueiros naufragados.
Havia uma anciã chamada Felicidade.
Apareceu enforcada numa figueira.
Ninguém sabe quais serão as últimas palavras.
fotografias de André Kertész
vistas aqui
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
das palavras dos outros
josé pedro moreira / Gatos no Quintal, Enfermaria 6, 2018
O TERRENO 2
pedras a fazer de postes
o terreno de jogo
estava minado
de trampa canina
havia que fintar
os calhaus e os dejectos
evitar os carros estacionados
fugir quando um alarme tocava
o pior
era quando a bola
ia parar à vivenda
era preciso saltar a cerca
era preciso ser rápido
por causa do cão
no verão
os rapazes jogavam à bola
pela noite adentro
até deixarem
de ver as balizas
era preciso saltar a cerca
era preciso ser rápido
por causa do cão
no verão
os rapazes jogavam à bola
pela noite adentro
até deixarem
de ver as balizas
Carlos Cánovas
Paisaje Anónimo, Zarautz, 2017
visto aqui
outrora havia os mestres obreiros
erguiam catedrais de beleza a partir da pedra
dos anos para admiração de todos
tanto do vulgo como do senhor
quando calhava fechavam-nos numa caixa
e eles apodreciam no chão
nós os seus netos arrepiámos caminho
sabemos que entre nós e a morte
só há isto
erguer muros e sebes
para que os possamos derrubar
sabemos que esta é uma fórmula tão válida
como outra qualquer
de medir o tempo
erguiam catedrais de beleza a partir da pedra
dos anos para admiração de todos
tanto do vulgo como do senhor
quando calhava fechavam-nos numa caixa
e eles apodreciam no chão
nós os seus netos arrepiámos caminho
sabemos que entre nós e a morte
só há isto
erguer muros e sebes
para que os possamos derrubar
sabemos que esta é uma fórmula tão válida
como outra qualquer
de medir o tempo
Paul den Hollander
Les Pyramides du Nord
Les Pyramides du Nord
visto aqui
sexta-feira, 13 de julho de 2018
sublinhados & notas
Traçar um Nome no Coração do Branco | Rosa Alice Branco | Assírio & Alvim | 2018
Traçar um Nome no Coração do Branco | Rosa Alice Branco | Assírio & Alvim | 2018
DO POEMA ENQUANTO CLIPE
Apresentar um livro de
poesia será sobretudo celebração da própria poesia, e nela da vida, na exacta
medida em que os poemas nos acrescentem, como é notoriamente o caso, sentido e sentidos à nossa tão gloriosa como precária existência: Rosa Alice
Branco, Traçar um Nome no Coração do
Branco (Assírio & Alvim, 2018). E tal acontece, antes de mais, porque
se trata de um ciclo poético extremamente desafiante em termos de leitura, ao
baralhar expectativas e questionar, na prática, os limites do que podemos
designar, simplificando, como o universo da poesia.
Há uma primeira tentação:
ficarmo-nos pela leitura, pela simples leitura audível dos poemas, e eis aqui
um primeiro impacto da obra, a par do livro-objecto que não nos deixa também indiferentes,
assim demasiado rosa avermelhado, com um título a branco que nos fala,
precisamente, do branco. Enleia-nos uma
musicalidade muito natural, um falar que diríamos chão, mas cheio de pequenas e
preciosas surpresas. Um discurso que cria uma insidiosa envolvência no leitor,
uma espécie de respiração fácil; há uma distensão nesta poesia, preguiça
sensual, languidez. Sinto o livro bastante “cool”, na sua musicalidade fluente,
mesmo que o clima não deixe de ser frequentemente lírico e (não tenhamos medo
da palavra) apaixonado. Ainda assim “cool”, predominando uma espécie de
contínuo “legato” que, aliás, a regularidade da própria mancha gráfica
confirma.
O que imediatamente toca o leitor neste
livro é a conhecida coexistência na poesia de Rosa Alice Branco de um vector
que ligaríamos ao pensamento racional, técnico, científico ou filosófico e de
um discurso propriamente lírico (basta recordar títulos da autora como Monadologia Breve ou A Mão Feliz- Poemas D(e)ícticos). Poemas
como os que aqui encontramos accionam múltiplos saberes e há, no caso
particular deste ciclo, a proposta de uma espécie de catálogo de modalidades e
objectos de design (num sentido amplo
do termo), que vai das peças de autor aos objectos mais comuns, passando também
por termos científicos ou referência a marcas comerciais e a um conjunto de
termos que associamos ao mundo moderno e globalizado. No entanto, tais
referências entram numa deriva poética que dá a um universo que seríamos
tentados a considerar tecnocrático novas e inesperadas ressonâncias. Mas não se
trata, naturalmente, de uma exibição gratuita de extravagância nem do gosto da provocação
pela provocação, embora haja aqui um muito evidente sentido lúdico. Somos,
antes, conduzidos a uma travessia de saberes que pressupõe um alargamento do
campo de experiência da vida que a melhor poesia sempre nos propõe. Como diz
Barthes em Leçon, trata-se apenas de
seguir o exemplo da pedra de Bolonha:
«A
literatura [e por maioria de razão a poesia] ocupa-se de muitos saberes (…)
[mas] desvaira os saberes, não estabelece ou fetichiza nenhum deles;
concede-lhes um lugar dissimulado e essa dissimulação é preciosa. (…) permite
designar saberes possíveis- insuspeitos, inacabados: a literatura trabalha nos
insterstícios da ciência: está sempre para além ou aquém dela, tal como a pedra
de Bolonha que irradia à noite o brilho que acumulou durante o dia e com esse
luar ténue ilumina o novo dia que desperta. A ciência é grosseira, a vida é
subtil, e a literatura interessa-nos na medida em que tende a corrigir essa
distância, essa diferença.» (Lição,
ed. 70, 1979, trad. Ana Malfada Leite)
sábado, 9 de junho de 2018
# Em Agenda #
Caderno 5
Caderno 5
os pastéis de nata ali não valem uma beata
[antologia de 2017]
Enfermaria 6, Lisboa, Maio de 2018, 220 pp.
Capa de Gustavo Domingues
aqui
os pastéis de nata ali não valem uma beata
[antologia de 2017]
Enfermaria 6, Lisboa, Maio de 2018, 220 pp.
Capa de Gustavo Domingues
aqui
sexta-feira, 4 de maio de 2018
OTERCEIROTEXTO
A tradução de um poema de Sinéad Morrissey de novo na Enfermaria 6. "Through the square window" pertence ao livro com o mesmo nome, de 2009, e é um dos mais conhecidos e enigmáticos poemas de Sinéad.
A infância, a maternidade, a geografia mítica de Belfast, coisas deste mundo e do outro separadas por vidraças dificilmente transparentes, e muitos e diversos ecos: o azul de Delft, Derek Mahon ("Courtyards in Delft"), E E Cummings ("how do you like your blue-eyed boy / Mister Death") ou Larkin, a quem a autora já dedicara um texto do seu primeiro livro ("To Look Out Once from High Windows").
A infância, a maternidade, a geografia mítica de Belfast, coisas deste mundo e do outro separadas por vidraças dificilmente transparentes, e muitos e diversos ecos: o azul de Delft, Derek Mahon ("Courtyards in Delft"), E E Cummings ("how do you like your blue-eyed boy / Mister Death") ou Larkin, a quem a autora já dedicara um texto do seu primeiro livro ("To Look Out Once from High Windows").
sábado, 7 de abril de 2018
quarta-feira, 28 de março de 2018
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
processos sumários
GRANDES ÁRVORES, PISCINAS
para a Fátima, em memória
jmts
GRANDES ÁRVORES, PISCINAS
para a Fátima, em memória
É um facto que já cá não estás
nem te veremos por entre luzes
e sombras do verão que vier
ou nos braços húmidos do vento
em brilhos de água cercando-te
enquanto respiras
Mas há vida entre todos os factos
e foi em diferida inspiração
que a grande árvore caiu
conhecendo, discreta
o teu caminho
Uns dias após a tempestade
quando inteira, em tronco
e ramos, e vidros partidos
imensamente nos desabou
em tua exacta memória
Uma vida entre todos os factos
quando nascias do fundo
da piscina e os braços como folhas
suspendiam o corpo
tão preenchido de si
nesse grande azul
que agora mesmo insiste
como se fosse teu
e de cada vez
para todo o sempre
nem te veremos por entre luzes
e sombras do verão que vier
ou nos braços húmidos do vento
em brilhos de água cercando-te
enquanto respiras
Mas há vida entre todos os factos
e foi em diferida inspiração
que a grande árvore caiu
conhecendo, discreta
o teu caminho
Uns dias após a tempestade
quando inteira, em tronco
e ramos, e vidros partidos
imensamente nos desabou
em tua exacta memória
Uma vida entre todos os factos
quando nascias do fundo
da piscina e os braços como folhas
suspendiam o corpo
tão preenchido de si
nesse grande azul
que agora mesmo insiste
como se fosse teu
e de cada vez
para todo o sempre
jmts
David Hockney | Swimming Pool | 1978
domingo, 31 de dezembro de 2017
das palavras dos outros
john berger/ E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias
Quasi edições, 2008 | tradução Helder Moura Pereira
Quasi edições, 2008 | tradução Helder Moura Pereira
Depois foi um pequeno gato. Um gato completamente branco. Vivia numa cozinha de chão irregular e chaminé a céu aberto, com uma mesa desconjuntada e paredes rugosas, caiadas de branco. Quando estava encostado à parede, o gato tornava-se quase invisível, só se viam os olhos escuros. Quando virava a cabeça, desaparecia no interior da parede. E quando se punha aos saltos no chão ou em cima da mesa, parecia um ser que nascia da própria parede. O modo como aparecia e desaparecia dava-lhe a intimidade misteriosa de um deus do lar. Eu sempre achei que os deuses do lar foram animais. Por vezes visíveis, por vezes invisíveis, mas sempre presentes. Quando me sentava à mesa, o gato saltava-me para os joelhos. Tinha dentes aguçados e tão brancos como o seu pêlo. E língua cor-de-rosa. Como todos os gatos de pouca idade, passava a vida a brincar: com a cauda, nas costas das cadeiras, com o que ia encontrando no chão. Quando queria descansar, procurava um sítio confortável e aí ficava. Ao olhá-lo, fascinado, durante uma semana, notei que ele escolhia, sempre que podia, algo que tivesse cor branca- uma toalha, uma camisola, roupa interior. Então, de olhos cerrados e boca fechada, enrolava-se todo e tornava-se invisível no meio das paredes brancas.
Lauren Henkin
visto aqui
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