poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








terça-feira, 31 de agosto de 2010

o lugar que muda o lugar




Capela dos Ossos em Lagos


É um anexo da morada branca
para lá da sucessão das naves
Em rigor, errámos apenas de transparência
em transparência, até às cúpulas quebradas de cristal
Há mudanças de horários, atrasos nos semáforos
uma ou outra metáfora
ondulações, voos espaçados
Recomeçaram obras de conservação ou de restauro
e assim se adiam as visitas
O estilo é gracioso, com ossinhos delicados
simetrias que o acaso desenhou
para quase nada
e só o pensamento agora edificou
Pendem as maçãs de ouro, no fundo do jardim
como se fossem já maduras

Ampliações e reconstruções
os nomes que imitam, como sempre, a natureza
estragos causados por um terramoto antigo
a imagem de uma santa dando à costa num caixão
e que alguém vai recolher, após naufrágio

Lento, o labor do sal e da luz nessa capela



JMTS











terça-feira, 17 de agosto de 2010

súbito a mão


São poemas antigos. Sinto que escrevo hoje bastante melhor e bastante pior do que nesses tempos. A dedicatória que lá não está é ainda a dedicatória que lá não está. Sei que, se um dia puder publicar uma reunião de poemas meus, estes vão aparecer: primeiras pedras, seixos, pedregulhos.



I.



Súbito
a mão
para lá da
luva prespontada
aqui influi o sangue
langue o corpo exangue
dói
pelo empapado tecido opaco
enquanto duram os
mecanismos perfurantes
Mas súbito
a mão





II.


Rasga-te o pó do rosto
o trovão limpo
sobem as águas
ferros enferrujam
arcos de ângulos
barcos rumam
o teu olhar
liso
após a tempestade



III.



Precária transparência
rente à janela rasa
duram os destroços
vivos a asa aparafusada
caindo
quartos de olhos
entreaberto círculo
espiado violada
permanência
a tua mão fria
no lençol clandestino
esvaindo
Mas súbito
copiosas chuvas
nos teus dedos
frágeis
frios






IV.



Chuva nos vidrilhos espa
lhados
rui o lugar enraizado
a ferro labirinto des
dobrado à chuva grossa
nos cruzamentos cerrados
abrem-se as pontas
no mudar do nevoeiro
as pontes
A tua mão
chuva concêntrica
no lago





V.


As raízes fundas per
seguem as tuas
águas claras reentrâncias
unas sugadas pelas
células mortas minerais
Envolvem férreas circunstâncias
o leito adulterado
as mãos cerradas per
passadas
Mas súbito
as dunas
a mão
e
a mão
entrelaçadas





VI.



Persistem as duras
cintilações nos belos
espelhos a guerra ácida
óxidos ferros per
sistem Mas nos membros par
tidos o súbito
sereno laço
a asa asa
Silêncio
no côncavo da onda
a tua mão
vem





VII.



Trovejados até à lisura
os poros de areia nas pálpebras
de chuva





VIII.



Nas veias do teu olhar
no súbito seio
da tua palma clara
reerguidas as cidades
no curso dos teus dedos
E apagam-se os sinais
                      acumulados



Esta sequência poética foi publicada em 1983, no âmbito de um concurso literário organizado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com o apoio do F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), comemorando o IV Centenário da Morte de Camões -1980-81. Coube-lhe o segundo prémio, sendo o júri constituído, nomeadamente, pelos professores Arnaldo Saraiva, José Adriano de Carvalho e representante da Associação de Estudantes. O primeiro prémio foi atribuído a Mecânica do Sexo XX, que inaugurou a obra poética de Luís Adriano Carlos, investigador e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O terceiro ao poema "Espigas de Urze" (publicado conjuntamente com o segundo prémio), de Mª. Conceição Meireles Pereira, hoje investigadora e docente do Departamento de História da mesma Faculdade (autora, aliás, de um pequeno livro que muito aprecio: O Porto no Tempo de Garrett - Biblioteca Pub. Munic. Porto, 2000). O desenho da capa é de Ana Freire.












quinta-feira, 12 de agosto de 2010

o som é como um laço



Aqui, na página virtual de Adriana.


adriana calcanhotto . "calor" in cantada . 2002


[ O som é como um laço porque a música que nos interessa - matemática pura e longínqua- chega até ao momento vivo e contingente que é, exactamente, o nosso, aqui e agora: por exemplo, calor na varanda de Lagos sobre o verão. Adriana dá-nos nesta canção uma Winterreise tropical: o pequeno formato dos grandes sentimentos, a natureza cúmplice e adversa, geografias desencontradas, o amor projectado numa distância íntima, que as inflexões da voz explicam como é.]




sábado, 7 de agosto de 2010

 Parábola Óptica
 teorias portáteis sobre fotografia






                        Momento Decisivo ou Inventário do Mundo

De entre as práticas da fotografia, procuremos reter duas polarizações, a partir das quais poderíamos graduar muitos outros percursos pessoais. São pontos de referência num universo de pesquisa estética múltiplo e cada vez mais descentrado. Cercar o mundo, estender-lhe diferentes redes de captura, sabendo que ele é matéria fugidia ou que a missão é talvez apenas impossível.
Por um lado, buscar o momento decisivo, no rasto dos passos consagrados de Henri Cartier-Bresson, das suas fotografias e escritos teóricos. Com a discrição, penetração, rapidez e rigor do olhar, fixar momentos em que o mundo como que se assemelha mais a si próprio, construindo arquétipos onde quotidiano, História da arte, geometria e ideologia dialogam numa tensão e equilíbrio enfim revelados. Só um exemplo: Derrière la gare de Saint-Lazare (Paris, 1932).





É uma cena trivial de um Paris chuvoso, que o fotógrafo-repórter percorre numa atenção quase felina. O momento decisivo: na espessura do quotidiano, na sua materialidade um pouco sórdida (pedregulhos, escadas desconjuntadas, traseiras do grande mundo), o milagre da matéria volátil e grácil da vida. O salto atrapalhado de um anónimo transeunte, para não sujar os pés na lama da cidade, repete a imagem do cartaz que anuncia a beleza leve de uma pirueta. E o fotógrafo merece, então, toda a sorte que o apuro do seu olhar justifica. No Inverno do mundo, inventar o mundo que retoma a inesperada e árdua suspensão do mundo.

Em silencioso contraponto, Andrew Hetherington (e é apenas um exemplo) prossegue o mais paciente trabalho de inventário, quarto de hotel após quarto de hotel, na sua série / livro A Room with a View, como se aí se jogasse o próprio modo de habitarmos a vida. O fotógrafo apresenta-nos uma pesquisa sistemática de quatro anos das suas errâncias, registando, de modo aparentemente neutro, as paredes de todos os hóteis onde permaneceu e as vistas das respectivas janelas. Da acumulação da banalidade nasceria uma compreensão global, dar-se-ia um salto qualitativo, numa espécie de teoria explicativa, bem fundamentada, mas por desistência ou exaustão. Talvez aqui se repitam (um pouco ao contrário, elegendo a estranheza vulgar do quotidiano contemporâneo como um novo exotismo, e retomando com ironia o romance de E. M. Forster) as imagens dos primitivos fotógrafos norte-americanos à descoberta do Novo Mundo ou as peregrinações pelas geografias orientais de finais do século XIX. Esta série fotográfica pode ser vista na página virtual do autor (aqui) e é apresentada, com a ironia devida, neste vídeo (aqui).


 



Uma outra sugestão de leitura, para acompanhar a série de Hetherington: o romance de Olivier Rolin, Suite no Hotel Crystal (aqui), em que se prova, na prática, como todas as histórias do mundo se escondem e revelam no seco rol dos quartos de hotel que nos cabem ou fazemos por merecer.

J.M.T.S.