poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








quinta-feira, 24 de agosto de 2017

sublinhados & notas



depoimento na revista Time Out Porto (Agosto 2017) 



COMO EU ESCREVO

Antes de mais, seguir o conselho de um grego antigo: falar e escrever, mas só se for mais intenso do que o respectivo silêncio. Ainda assim, arriscar, porque o céptico Bartleby não existiria sem o diligente Melville. Partimos, como se vê, do que os outros fizeram e acrescentamos gestos muito nossos. Aceito a energia de gatafunhos e manchas de tinta, pode ser num café barulhento ou em rascunhos mentais pelo caminho, em discreta homenagem aos peripatéticos. Seguem-se tentativas de depuração, em que o computador ajuda muito, se possível no silêncio, num lugar simplificado, sem esquecer a prova dos nove da leitura em voz alta. Os textos merecem depois algum repouso, entre os trabalhos e os dias. Como na arte das compotas, só então se avalia o sabor inteiro, se algum persistiu. A insinuação do que escrevo surge-me de um fundo de vivências indistinto e forte, que procuro esclarecer em meia dúzia de fórmulas abstractas. Mas o projecto é alcançar uma espécie de música de sílabas e ideias, de lugares, tempos e pessoas. Podemos verificar se tudo correu bem: as palavras aumentaram a vida?; a vida aumenta as palavras? Isto tudo sou eu a dizer, mas temos acesso a muito pouco. “Como eu escrevo” é só mais uma ficção, um pouco inconsciente de si própria. Em todas elas e nos poemas sigo o antigo acordo ortográfico. O outro só em relatórios, e não é disso que se trata aqui.

jmts








terça-feira, 22 de agosto de 2017

sublinhados & notas



O Jogo das Comparações  | Inês Lourenço | col. azulcobalto 042 | Companhia das Ilhas | Lajes do Pico, 2016




DO FLÂNEUR AO INVENTOR DE JOGOS


Apresentar um livro de poesia como este (Inês Lourenço, O Jogo das Comparações, Companhia das Ilhas, 2016) deveria ser uma experiência tão vital como a própria poesia. Poderemos, nessa medida, começar a aproximação ao novo título da autora (que surge já após a recente antologia que abrange os 35 anos da sua escrita, intitulada O Segundo Olhar, na mesma editora, em 2015), a partir de um exemplo significativo disso mesmo:




IRMÃOS KARAMAZOV

Perguntava à menina da livraria
por estes irmãos, cujo nome
ela dedilhou no teclado
com óbvias letras erradas.
- É recente? – indagou
com uma prestável candura.
O eventual comprador parecia
não saber ao certo. Uma espécie
de desânimo atravessa-me os sentidos
na memória nostálgica
dos meus verãos adolescentes, falésias
de tardes febris com a pele
das páginas onde Aliocha e Ivan
ou Sónia e Raskolnikoff
iluminavam a culpa e o temor
que fatalmente já me pertenciam.

(p.52)


O poema traz-nos alguns dos temas que têm sido privilegiados pela autora e o seu tom inconfundível: impõe-se o elogio da leitura e dos livros enquanto lugares vitais, uma concepção não essencialista, idílica ou decorativa da escrita, um pendor narrativo, a ligação com o quotidiano e a memória. E também esse modo crítico e implacável perante alienações, ignorâncias e pretensiosismos humanos. Mas é um poema que funciona como contra-exemplo relativamente ao local que o livro escolhe para se apresentar, porque talvez não haja acasos: uma livraria do Porto que se chama, significativamente, Flâneur.


Flâneur é um dos pobres heróis modernos desapossados de epopeia, como nos dizem Poe, Baudelaire ou Walter Benjamin. Se, para o primeiro, é um sujeito suspeito que assume o espírito do crime, já para Baudelaire e Benjamin surge imerso na grande cidade, caminhando-a infatigavelmente, mas observando-a nessa distância crítica que o torna, feitas as contas, imune aos seus valores mercantis, bem ao contrário, por exemplo, do dandy, que se assume, nesse mesmo contexto, como uma mercadoria exótica e sofisticada (veja-se a propósito o interessante artigo “Duelo Poético na Cidade: as Peripécias do Herói Moderno”, de Ricardo Daunt, in Colóquio / Letras, nºs. 125/126, 1992). O sujeito da poesia de Inês Lourenço assume muitas vezes (e de novo nesta recolha) o ponto de vista do flâneur, até porque se trata, decididamente, de uma escrita urbana- relembre-se um título que reúne alguns dos seus livros: Um Quarto com Cidades ao Fundo. Mas adopta também a atitude de uma outra destas figuras da modernidade, o trapeiro, que se confunde com o poeta: recolher restos de sensações e de rimas como o trapeiro os despojos da cidade. É assim que a poesia de Inês Lourenço valoriza aparentes refugos da vida e do quotidiano, reabilitando-os, como se se tratasse de uma nova alquimia. Esses seres e lugares preenchem O Jogo das Comparações, seja uma galinha, uma teia de aranha ou outros seres em “desabrigo”, desta vez humanos, para invocar um título do livro. O flâneur e o trapeiro preferem “as pequenas pátrias” (conforme a sequência final), fazem questão de manter as suas distâncias relativamente a instituições, poderes e artefactos mais ou menos sublimes. 



O Jogo das Comparações é um excelente exemplo da poética de Inês Lourenço e chega-nos às mãos depois de viver a sua própria história: “habent sua fata libelli”, como se constata desde tempos remotos. Esteve para ser publicado com a chancela da “& etc.” (como alguns dos títulos imediatamente anteriores da autora), mas, já em fase final de produção, tal acabou por não acontecer, pela circunstância do desaparecimento do editor, Vítor Silva Tavares, e a extinção da sua, aliás insubstituível, actividade “subterrânea”. É agora muito bem acolhido pela Companhia das Ilhas (e envolvido, na contra-capa, por uma fotografia de Susana Paiva). Vejo-o como um exercício de apuro e estilização de muitos dos motivos desde sempre presentes nesta poesia, numa espécie de música de câmara, após alguns livros a que poderíamos associar uma certa ressonância sinfónica. Caracteriza-o um expressivo efeito musical de surdina, no mesmo gesto em que retoma muitos dos veios temáticos da escrita da autora, desta vez organizados em três sequências, que estabelecem uma espécie de tríptico.


A segunda, “Teia”, está muito próxima dos seus bestiários, da atenção aos seres frágeis e plenos, afirmando uma insinuante nostalgia relativamente à competência vital dos bichos: “abandono” e “soberbas coisas ínfimas”, para retomar a epígrafe de Manoel de Barros. Mas trata-se de unir esses motivos essenciais ao percurso biográfico e a “cenas primitivas” que se inscrevem na construção de uma identidade pessoal, como em “A Galinha” e “Teia”, ou, lembrando “Gatos e Camélias” e “Animal Verde”, balizam pequenas descobertas e sensibilidades do quotidiano do sujeito poético. Encontramos ainda uma subtil parábola política sobre a inteireza e integridade das existências (“No Tempo em Que os Gatos eram Inteiros”), bem como a mordacidade que caracteriza frequentemente uma escrita que vem prolongar a longuíssima tradição satírica da poesia portuguesa. Por sua vez, “Galgos”, “Equus”, “Taurus” ou “Serpens” transplantam o concreto biológico da vida mais vital, o mais chão fluir dos dias, para uma inteligibilidade mítica ou estética.