poesia . fotografia . & etc.


Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado . Chico Buarque de Hollanda, com Gilberto Gil








domingo, 31 de julho de 2016

das palavras dos outros







sam shepard / in Crónicas Americanas, Difel, s.d.
(Tradução de José Vieira de Lima)




Vejo o meu filho mexer-se, enquanto sonha
Enquanto dorme, de lado, numa cama de motel

No quarto ao lado, um casal discute
Ele repete: «Então, Lorraina, não faças isso!»
Ela repete: «Porquê?»

Nadadores mergulham na piscina, lá fora
Nadando na noite
Nem uma só voz

Os braços que batem a água

Enquanto
O miúdo estremece
Dá voltas com a cabeça na almofada
Há um sonho que passa dentro dele
A sua voz
Sem palavras

Os Grandes Montes Tetons assomam, de fora, à nossa janela
Sem neve
Azuis

O Rio Snake serpenteia à volta da nossa cama
Sibila para dentro de si mesmo

O tipo com o cinturão de cartucheira chega à janela e berra
«Mais cuidado com essa linguagem» para o casal que se trava de razões

O casal cala-se
Solta risinhos abafados

O rodeo acaba
Ouvem-se os camiões

O Café Elk Horn enche-se de montadores de touros
A águia voa no encalço de uma truta

Alguém deixa cair uma moeda na máquina do gelo
A máquina cumpre com um baque seco

Os nadadores deixam a piscina
Agora estão a falar
Mas não consigo entender as palavras

Os alces seguem para norte
(Quase que podemos ouvi-los)

O urso pardo segue para onde lhe apetece
(Ontem comeu três caminhantes)

O meu miúdo anda aos saltos, enquanto sonha

Uma espingarda dispara

O casal grita

O miúdo acorda


5/8/80
Jackson, Wyoming






Edward Hopper
Gas, 1940







sábado, 23 de julho de 2016

sublinhados & notas



Dramas de Companhia  | André Domingues | col. azulcobalto 037 | Companhia das Ilhas | Lajes do Pico, 2016



O JOGO DO SÉRIO


As ficções deste livro instalam uma verdadeira armadilha a apresentadores incautos, porque, pela sua complexidade e efeito de surpresa, estabelecem um jogo, não isento de perigos, com o leitor. Não é que não estivéssemos avisados pela epígrafe de Machado de Assis: “O melhor drama está no espectador e não no palco”. Uma após outra, as narrativas avançam por entre fronteiras do sentir e do pensar - para nos cingirmos a categorias convencionais. Expulsos de territórios de conforto literário e existencial, somos, então, conduzidos a zonas-limite, terras de ninguém, lugares que não são fáceis de habitar. Provocação e desafio, exactamente como no Jogo do Sério.
O Jogo do Sério - conhecem? Alguém olha alguém nos olhos, numa quase perfeita simetria, como num espelho vivo e inquieto. E nesse jogo a seriedade desemboca no riso e o riso (a hipótese do riso, o seu esforçado adiamento) é levado a sério, como se fosse um caso de vida ou de morte. Mas é só um jogo, e depois tudo sempre recomeça. Lembrei-me deste exercício a propósito das ficções de André Domingues, como se fosse a ponta de um fio, estratagema para começar a deslindar o objecto inquietante. Olhos nos olhos com o leitor, um jogo sério, com a velha virtude da “gravitas” e, profundamente embrenhado nisso, um imenso sentido lúdico. Fica a dúvida: jogamos a sério (porque jogar é um caso sério, como acontece com as crianças) ou é a seriedade apenas uma brincadeira, algo afinal descartável e necessariamente relativo? Adiar o nosso riso, a descompostura que desmancha a pose de estátua - é o que aqui se faz com virtuosismo e, entretanto, somos alvo, nesse jogo, de um percurso de reflexão e sensibilidade que nos transforma. “Dramas de Companhia”- já no título o sério e o lúdico, a brincadeira fonética que aproxima angústia existencial e sentido de irrisão. Poderíamos recordar um  jogo semelhante que dá o título a uma obra de um autor que (suponho) terá algo a ver com a família literária destes textos: Rayuela de Julio Cortázar. “Rayuela” - o nosso “jogo da macaca”, que é também, simbolicamente, como aqui, um jogo do mundo entre a terra e o céu, em percursos de habilidade e risco. 



Uma outra forma de me aproximar do livro passa por um poema do espanhol Blas de Otero (1916-1979), que me lembra uma das razões por que gosto destes textos: “Tu seno izquierdo”, incluído em Hojas de Madrid con La Galerna:

TU SENO IZQUIERDO

Cuántos problemas tiene el mundo, el hombre, el espíritu santo.
Si no hubiera problemas habría que inventarlos a fin de  resolverlos.                                                       
Es el problema por el problema -algo así como el arte por el arte.
Imagínese un mundo liso, alisado, superficial, sin problemas.
Tan aburrido como el cielo.
Como una mujer junto a una estufa.
Yo amo los problemas como a tu seno izquierdo.
Sólo para acariciarlo.
 

Impõe-se o valor do problema pelo problema, superando um mundo liso, aborrecido e normalizado, na busca do mais essencial (o seio), mas também do único, do irredutível - precisamente o seio esquerdo, não o outro, por capricho e apego ao singular, uma precisão que é também muito frequente no livro que nos ocupa. O esquerdo, que é, pela sua simbologia, o controverso, o provocatório, o desalinhado, o que se afasta do consensual caminho do bem.
Este livro cumpre uma função extraordinária da literatura (no preciso sentido do termo) - colocar questões, deslocar o olhar, experimentar diferentes pontos de vista, baralhar linguagens, dar de novo o jogo, mudar os trunfos. Resistir às versões correntes e normalizadas do mundo, à chamada “vida real”, às narrativas dominantes, ao senso mais comum. Isso implica, de algum modo, retomando a epígrafe de Clarice Lispector, uma “verdade inventada”. Trata-se, ao contrário do que se pretende na vida útil (digamos assim), de ligar o “complicador”- nada de “simplex”. Porque a vida é subtil. Como encontramos numa canção de Chico Buarque, em parceria com Gilberto Gil: “Talvez o mundo não seja pequeno / nem seja a vida um fato consumado”. 

terça-feira, 12 de julho de 2016